Passo à frente ou decisão perigosa?

Pensei dois títulos para este texto, e não sei qual devo escolher: será “Um passo à frente” ou “Uma decisão perigosa”? Me divido entre os dois, porque a decisão do STF no Recurso Extraordinário 603616, tomada na última quinta-feira, me deixou nesta posição ambígua, entre animado e preocupado.

Discutiu o Supremo, em matéria de repercussão geral, a validade de prisão em flagrante realizada na casa do recorrente, sem mandado de busca e apreensão, com base em informação obtida com outra pessoa anteriormente presa. A ementa aprovada diz o seguinte: “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados”.

Não costumo escrever sobre Direito, mas este tema me toca profundamente, porque convivi diretamente com ele na jurisdição. Por vários anos, apreciei flagrantes acontecidos em invasões de casas sem mandados judiciais, quase sempre com apreensão de drogas ou armas. (Como já escrevi, quando nada é apreendido, a ilicitude da ação não é apurada.)

Isso me levou a um posicionamento crítico e, em decorrência, a uma crescente negativa em homologar tais flagrantes, fato que ensejou uma queixa do Comando de Policiamento da Capital à Corregedoria Geral de Justiça, ocasião em que, em resposta, expus as reflexões que então fazia sobre a matéria. Mais recentemente, escrevi novo artigo, em que enfatizei a grande contradição que envolve os flagrantes, que – agora me dou conta – podem ser vistos a partir da Teoria do Fruto da Árvore Envenenada: o Judiciário validava a ação ilícita a partir do resultado positivo.

Era bem essa a situação: quando a polícia invade uma casa à procura de armas ou drogas – e pode achar drogas quando procura armas e vice-versa –, geralmente o faz sem maiores justificativas ou elementos de convicção, na base do achômetro, de uma denúncia anônima, de investigação informal ou porque lá mora pessoa que se supõe cometa tais crimes. Em outras palavras, na origem a conduta é ilícita, mas a prática do Judiciário era a de convalidar a ação pelo resultado.

Se vejo a decisão agora adotada pelo Supremo a partir dessa preocupação, tenho de usar o primeiro título, porque houve um claro avanço. De fato – e nisso estão equivocados os que afirmam que a decisão consagra jurisprudência já existente –, a decisão não aceita a validação pelo resultado. Pelo contrário, o que os Ministros afirmaram foi que, muito mais que o resultado em si, deve ser demonstrada a existência prévia de justificadas razões para a ação. Não basta, portanto, o resultado; é necessário provar que havia elementos prévios que justificassem a invasão.

É, inegavelmente, um passo à frente.

Mas, por que aquilo que se caracteriza como passo à frente pode ser visto como uma decisão perigosa?

É perigosa porque foi tímida, ficou na superfície do fato social, não tirou todas as consequências de uma preocupação evidente na exposição do voto do Ministro Gilmar Mendes, de que a validade da busca seja testada com o que se sabia antes de sua realização, ou da preocupação do Ministro Ricardo Lewandowski, de se buscar uma salvaguarda para a medida extrema proposta pelo Ministro Gilmar Mendes. (Veja-se que há a consciência de que se trata de medida extrema.)

Faltou, por exemplo, uma ênfase compatível com a fala de Gilmar Mendes de que há uma presumível falsidade quando se alega que o ingresso na casa foi franqueado, depois ignorada por Celso de Mello, que sublinhou, sem fazer ressalvas, a possibilidade de ingresso, mesmo noturno, quando autorizado pelo morador. Faltou, em síntese, compreender as gambiarras que são feitas para justificar ilegalidades.

Mais, faltou uma coisa essencial: a justificativa da urgência. Claro – poderão dizer os defensores do ingresso sem restrições –, a urgência da medida é presumida, quando se trata de flagrante. Mas aí é que está a grande questão: aqueles belos exemplos sempre utilizados para impressionar, de tentativa de homicídio ou de estupro ou, falando em crimes permanentes, de sequestro ou cárcere privado, são situações excepcionais, que não podem ser utilizadas para justificar os corriqueiros flagrantes de apreensão de drogas ou de armas.

Para estes, apresento ao menos três distinções fundamentais, que a meu ver deveriam tornar absolutamente rigorosas as regras para convalidação. Em primeiro lugar, a própria frequência do fato, que acontece diariamente aos milhares em todas as grandes cidades brasileiras, e é expressão de uma forma de criminalidade endêmica, da qual nenhuma medida isolada nos livrará. Trata-se aqui, claramente, de dizer que essa exceção constitucional à inviolabilidade de domicílio se mostra de tal maneira aviltada que não vejo como se possa justificar a medida. De outro modo, continuará endêmica também a invasão de domicílio.

Um segundo critério está presente no fato de que, tratando-se de condutas que se desenrolam na clandestinidade – a droga e as armas estão guardadas e não gritam –, os próprios indícios acerca da sua existência não são sensoriais e de regra exigem prévia investigação. Ora, se há investigação prévia, o que impede a postulação de mandado?

O terceiro critério é a já mencionada urgência. É evidente que, havendo fortes indícios de que em determinada casa está cativa uma pessoa vítima de sequestro, se torna necessária uma intervenção imediata, dado o risco da demora. Nesse caso, de modo algum se há de exigir aguarde a polícia uma autorização do juiz.

Mas, qual é a urgência do ingresso numa casa sem mandado judicial para apreender cinco pedras de craque? Se a urgência não for tomada como requisito para a ação, a própria polícia poderá adotar uma sistemática que prescinde do mandado judicial: bastará, após investigação sumária, relatar um conjunto de argumentos que convença o juiz de que havia fundadas razões para acreditar que naquela casa se guardava droga, para assim obter uma justificativa tão insustentável quanto a falácia da legitimação pelo resultado.

É aqui que se situa o risco da decisão do Supremo, e é sintomática a fala do Ministro Marco Aurélio: “tudo muito bonito, mas qual é o caso concreto?”. O próprio STF parece não se preocupar tanto com isso, ao negligenciar o caso concreto, talvez pela quantidade de droga apreendida – a quantidade (8,5 quilos de cocaína) impressiona e acaba servindo, ela própria, como elemento legitimador. Em nenhum momento se perguntaram os ministros no debate se havia urgência para que a medida fosse tomada sem a busca de autorização judicial (também não vi nos argumentos a existência das fundadas razões para crer que na casa ocorria o crime).

Por isso, parece que o próprio caso levado a julgamento não é um bom exemplo para servir de paradigma autorizador ao ingresso na casa sem mandado judicial. Imagine-se, então, como será a prática diária, em que pouco lugar resta para salvaguardas em nossas mentes punitivas.

Rigorosamente, o que aparenta ser uma restrição imposta pelo Supremo, pode também ser visto como a senha para a adoção de uma prática transgressora. Já me imagino vendo um texto padrão bem bonito onde se mencionem as fundadas razões que justificam a dispensa da autorização judicial. E aquilo que hoje é feito só pela Polícia Militar passar a ser utilizado também pelos delegados.

Imaginados três balizadores – verossimilhança, relevância e urgência –, o STF se ocupou do primeiro, o mais fácil de ser distorcido, e não se preocupou com os demais. Ainda que desconsiderasse o da relevância – afinal, não há uma limitação legal a partir da hierarquia do crime – no mínimo deveria ter se preocupado com a urgência.

O Ministro Lewandowski falou em salvaguarda; o Ministro Teori falou em ponto de equilíbrio, mas receio que o Supremo tenha errado no ponto.

Em seu voto, o Ministro Celso de Mello citou a famosa frase de Lord Chatham, “O homem mais pobre desafia em sua casa todas as forças da Coroa, sua cabana pode ser muito frágil, seu teto pode tremer, o vento pode soprar entre as portas mal ajustadas, a tormenta pode nela penetrar, mas o Rei da Inglaterra não pode nela entrar.”

Saúdo a decisão do Supremo como um passo adiante, mas me preocupo e a considero perigosa, porque temo que continuemos a ouvir as palavras de um policial que me foram relatadas em audiência por uma mulher cuja casa foi invadida sem motivo e sem resultado: “em vila não precisa de mandado”.

A decisão ocorreu na sessão de 5 de novembro; no vídeo, inicia a partir de 41:20. A notícia está no saite do STF.

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