Uma foto de família

Queria escrever sobre família. Precisava escrever. Então, há dias me pus a pensar ideias para um texto. Não as tive.

É incrível minha dificuldade para definir o óbvio. Mais incrível ainda quando alguém diz absurdos sobre o óbvio. Como construir um discurso inteligente para refutar o absurdo? Parece que alguém nos ejeta do mundo da racionalidade, e daí qualquer palavra que venha terá de se adaptar à esquizofrenia do momento.


Pensei: talvez deva ler algum manual, trazer de lá uma definição bem prosaica e construir um texto em volta. Mas, não, não faz meu estilo e seria um texto sem alma.

Depois tive outra ideia: vou falar sobre o amor. Dizer: toda maneira de amor vale a pena. Isso seria bom: trabalhar sobre essa relação família-amor, porque afirmaria o que pode haver de sublime na família. Qualquer família.

Mas, me dei conta de que acabaria dando voltas em torno do tema, indo e voltando, batendo e rebatendo, e achei que não seria uma boa.

Além disso, não haveria uma correspondência plena: às vezes, há muito amor e não chega a ser constituída família; há ocasiões em que ela se constitui mesmo sem amor; e há tantas em que o amor há muito acabou, mas por uma série de razões a família continua lá.

Estava com essas elucubrações, que só vieram porque não sabia o que escrever, pronto para desistir de um assunto sobre o qual com palavras não sei dizer.

Foi aí que tive o estalo: se não sei dizer com palavras, uso uma imagem, que vale mais que mil.

Então, senhor deputado, olhe bem para a foto: é uma família!

Quando publiquei este texto, procurei ilustrá-lo com uma foto sugestiva, e encontrei uma do arquivo da Folha, de um casal gay do Rio de Janeiro. A escolha foi difícil, dada a multiplicidade de famílias, mas havia ali uma expressividade que me levou a usá-la, mesmo com aquele sentimento de pena por outras descartadas. Depois, a troquei pela foto da família da Daniela Mercury e Malu Verçosa, porque a tiraram com o propósito de protestar contra a definição de família proposta no Estatuto. Depois, quando primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau tirou foto com a família de um deputado gay, achei que devia publicá-la, para mostrar como a política pode servir ao amor e à inclusão, ao invés de ser instrumento do preconceito e exclusão. Hoje, véspera do dia das mães de 2016, mudo novamente a foto, para homenagear Luciana Salles e Luciana Kremer, mães de Luísa e Laura. Parabéns.

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2 respostas

  1. Avatar de Luís Christiano Enger Aires
    Luís Christiano Enger Aires

    Pio, conseguiste traduzir – como hábito – nossa perplexidade diante do momento. Tempos difíceis, nos quais, tentam impedir a realidade de ser vista por todos. Tempos nos quais faz cada vez mais se percebe que, de fato, ‘o essencial é invisível aos olhos’.

  2. Avatar de Naor Nemmen

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