Há meses pensava em escrever sobre as eleições dos Estados Unidos. Pretendia publicar na véspera. Mas esqueci. Não sei se foi só distração ou se fui traído pela falta de convicção sobre a linha que havia decidido adotar. Vou resumi-la. Pretendia fazer um texto inteiro contra Hillary, dizendo que ela era uma defensora do establishment, representante do grande capital financeiro e da indústria de armas, da qual poderíamos esperar uma posição agressiva dos Estados Unidos no mundo e o acirramento das guerras imperiais de sempre. Escreveria tudo isso, mas terminaria dizendo que entre uma cínica e um psicopata, ainda era mais seguro torcer pela cínica.
O fato é que fiquei em dúvida sobre o texto. Não que pensasse em aliviar para o lado de Hillary, temperando o escrito com seus evidentes alinhamentos democráticos sobre temas comportamentais. Também não porque compartilhasse daquelas ideias do tipo deixa explodir para ver o que acontece. Minha dúvida vinha de imaginar que aquele canastrão xenófobo e sexista talvez resolvesse cuidar mais do seu quintal e que, se eleito, não apertaria o botão vermelho, como tanto me preocupava. Afinal, sabemos bem que discursos eleitorais são uma coisa, atos de governo são outra, mesmo para os candidatos aparentemente mais desequilibrados.
Meu texto não saiu, Trump ganhou, e agora espero. Os sinais são ambíguos. Por um lado, a Rússia gostou do resultado, o que sempre é uma esperança de menos guerras. Por outro, segue firme a ideia de construir o muro na fronteira com o México. Temo quatro anos terríveis, e me darei por satisfeito se chegar ao seu fim com a mesma dúvida que me impediu de escrever o texto, porque significará que não se confirmou o que de pior espero.
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Cresci ouvindo louvações à maior democracia do mundo. Em tempos de guerra fria, as virtudes democráticas dos Estados Unidos serviam de modelo a toda terra, em contraste com o comunismo totalitário. O discurso oficial pegava, mesmo que então apoiassem ditadores sanguinários e estivessem por trás de todas as ditaduras latino-americanas.
Não sei quantos ainda acreditam na natureza democrática desse sistema, em que dois agrupamentos semelhantes, representantes de um poder plutocrático, se alternam no poder, sem espaço para confrontações. A existência de dezenas de partidos não altera o fato de que o poder se resume à bipolarização Democratas-Republicanos, que se tornam absolutos com seu sistema distrital majoritário, no qual não há espaço para intrusos.
E como explicar, pela realidade americana, o conceito de que democracia é o governo da maioria, se, pela segunda vez desde 2000, é eleito quem fez menos votos? A primeira foi naquela eleição de 2000, em que, com indícios de fraude, Bush ganhou de Al Gore na Flórida por 537 votos de diferença, e a Suprema Corte, de maioria republicana, proibiu a recontagem. Em 2000, Al Gore teve mais votos no país e não levou. Agora aconteceu com Hillary.
É estranha essa democracia, em que o presidente é eleito indiretamente por um colégio eleitoral de 538 grandes eleitores, num sistema em que todos os votos de um estado vão para quem venceu ali, seja por um milhão ou por um voto de diferença, e ter feito mais votos na eleição geral não produz nenhum efeito.
Essa democracia é tão estranha, que em mais de 80% dos estados o voto é descartável, porque são democratas ou republicanos por definição. Em Columbia, o eleitor democrata não precisa votar, porque já se sabe que está ganho, e para o republicano não adianta votar, porque está perdido. No Texas acontece o contrário, e os republicanos ganham sempre. Ali só se vota pra cumprir tabela. Sobra uma meia dúzia de estados, em que o voto oscila, e é neles que se decide a eleição. O voto do eleitor da Flórida, por exemplo, faz diferença, porque é um dos poucos estados em que há equilíbrio entre os partidos, e ambos têm chances de vencer.
Assim é a maior democracia do mundo.
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O sistema eleitoral-partidário segue inexpugnável como arcabouço jurídico que não abre brechas para o surgimento de alternativas, mas numa única eleição fez água dos dois lados. O sistema segue inteiro, mas é desafiado por dentro. À direita e à esquerda, há nos Estados Unidos, como já se via na Europa, descrença em democracias de fachada, que dão sustentação a um sistema econômico que há trinta anos tem permitido a concentração de renda, o aumento da pobreza e a retirada dos direitos sociais.
Por isso, é de se esperar que surjam contestações à esquerda, e nesse campo Bernie Sanders criou espaço como desafiante democrata. Mas, em tempos de crise, o capitalismo encontra seus desafiantes também à direita, entre a classe média empobrecida e entre aqueles setores sociais que perderam privilégios. Para eles, Hillary representava o sistema e Trump a contestação.
Do mesmo modo que a esquerda, a direita tem discurso para eles, e as propostas protecionistas de Trump caíram perfeitamente em seus ouvidos. Sanders está no outro polo ideológico, e suas posições encontram mais eco entre jovens e intelectuais, mas, se candidato, teria disputado com Trump parte daquele eleitorado desiludido.
Não sei se Trump foi mais competente que Sanders, se o espaço está mais fértil para a direita que para a esquerda ou se teve a sorte de encontrar o Partido Republicano vazio de líderes, enquanto Sanders teve de enfrentar a candidata há muito ungida pelo aparato partidário e por Wall Street.
O fato é que, eleito Trump, a história dos Estados Unidos anda. O azar é que tenha sido com o desafiante errado.
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