Sem internet

Havia dias em que no jardim de infância do Grupo Escolar Pio XII ouvíamos o estrondo das rochas que explodiam à distância. Não sei se por falta de tecnologia ou imperícia ou negligência, a cada estampido choviam pedras, e houve uma que chegou a se depositar caprichosamente aos pés da professora, após ultrapassar como um meteoro o teto de amianto.
Quando lembro, me dou conta de como então não havia preocupação com segurança: em outro episódio, os açougueiros tangiam pela rua de Bom Princípio um rebanho com destino ao matadouro, e um dos bois, rebelde e desesperado, se desgarrou e procurou refúgio junto a minha casa. Não sei dizer o quanto da minha lembrança é real, mas a imagem que tenho é a de ter por um instante ficado cara a cara com seus olhos vermelhos de fera ferida, que espumava seu terror e loucura, antes que o relho implacável o reconduzisse ao seu triste caminho.
Mas não era do boi que falava; falava das explosões. Sua finalidade era abrir caminho para a construção do que hoje é a RS-122, a estrada de São Vendelino. Até então, a ligação entre Porto Alegre e Caxias se dava somente pela federal, via Nova Petrópolis. Meus irmãos mais velhos, que estudavam no ginásio em São Sebastião do Caí, pegavam de madrugada o ônibus de São Vendelino. Eram doze quilômetros em estradas sinuosas de chão batido, e a travessia do Rio Caí se dava por barca. Quando o rio subia, o ônibus dava meia volta, ia até Feliz, lá o atravessava pela ponte de ferro e seguia a Caí via Escadinhas.
Certa feita minhas irmãs me levaram a Caí. Foi indelével a sensação de ver terras nunca antes vistas, pisar no desconhecido asfalto, tomar contato com a primeira metrópole da minha vida, sensação maravilhada que nenhuma criança teria hoje ao conhecer Paris.
Nessa mesma época, nosso vizinho, o Fröhlich, comprou uma televisão. Dois canais, 5 e 12. O sinal começava por volta das duas da tarde e ia até a uma da madrugada. No meio da tarde, invadíamos clandestinamente sua casa, pé ante pé, subíamos no maior silêncio possível a escada que rangia, para vermos se estava ligada. Se sim, nos instalávamos no sofá; se não, dávamos meia volta com as mesmas cautelas da chegada.
Sabíamos, sim, do mundo: pelo Correspondente Renner no rádio de válvula e pelo jornal diário assinado por meu pai.
Isso foi há meio século, duas gerações. Os mais jovens acharão que é muito; eu, que vivi esses anos, acho pouco; na verdade é só um soluço na história.
Passados quinze anos, numa Porto Alegre em tempos de efervescência política, telefone (fixo, evidentemente) ainda era um artigo de luxo, no meu caso restrito ao lugar de trabalho. Festas e reuniões eram combinadas pessoalmente, e pouca coisa funcionava sem que estivéssemos cara a cara com o interlocutor. O mundo girava na rua e pouco sobrava para a casa; no meu caso, a casa servia para leituras.
Lembro de um comentário maldoso dito acerca de um amigo que havia comprado computador, tachado de megalomaníaco, porque adquiria uma coisa caríssima e de pouca utilidade. Da internet ouvi falar pela primeira vez – não lembro se com esse nome – quando numa reunião no Rio de Janeiro soube que estaria por ser implantado no Brasil um sistema de conexão remota entre computadores, já em pleno uso nas universidades americanas. Isso mais para o final dos anos 80.
Em 96, em Cacequi, ouvi vexado um amigo de Porto Alegre me censurar, quando, após me dizer que mandaria um texto por e-mail, lhe respondi que não tinha. Passada mais meia dúzia de anos, tive de quebrar o piso da frente da casa de Ijuí, para instalar uma tubulação que comportasse dois fios de telefone, um para o telefone propriamente dito, outro para a internet. Wi-fi era uma coisa prometida para o futuro, e eu não podia esperar.
O resto todo mundo sabe: cada vez mais todos ficamos à frente de um computador, trabalhamos conectados à rede e quem não está no Facebook está fora do mundo.
Então, quando acontece um temporal como o de quarta-feira, que derruba a internet, este mundo desaba.
Após alagamento da casa de máquinas do Tribunal de Justiça, a internet cai por dois dias, e todos os fóruns fecham. Consegui ainda dar sentenças fora do sistema – agora, com seu retorno, serão nele inseridas –, mas tudo mais não funcionou.
Também fiquei por infindáveis 36 horas sem internet em casa. Me senti em total abandono, sem poder viajar no mundo. Até ensaiei fazer como antigamente, e retomei a leitura do meu Dostoievski encalhado. Mas, para meu alívio, fui salvo: a internet voltou, volto ao mundo e Dostoievski que me espere no próximo temporal.

Retirei esta foto de artigo de Fernando Albrecht, que nela identifica Kurt Backes e Ivo Ledur e a localiza nos anos 50. O ônibus que conheci era parecido, dos anos 60, sem as cortininhas, mas com uma escada atrás, para subir ao bagageiro localizado em cima do ônibus.

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