Já usei, mas uso de novo – fazer o quê, se ela insiste em martelar na minha cabeça? Distraído, canto mentalmente: o que dá pra rir dá pra chorar, questão só de peso e medida, problema de hora e lugar. A diferença é que Billy Blanco fala de alegria e tristeza, de ventura e desventura, enquanto penso na farsa transformada em tragédia.
Penso nisso quando vejo circular livremente – às vezes até entre pessoas inteligentes – a impostura da desideologização. Seria de rir, mas não dá, é grave demais.
E é grave porque, mais do que circular livremente, o discurso começa a pegar e a se transformar em política. O exemplo mais emblemático disso é o Escola sem Partido, que virou projeto de lei em Brasília e vários estados e cidades do país, invariavelmente proposto por parlamentares direitistas.
A chave do discurso que assim corre está na conceituação do que seja ideologia. Ou talvez nem isso, porque discutir o conceito é um tanto difícil para o pensamento raso; melhor é estabelecer classificações a partir de situações concretas.
Posta a questão desse modo, tudo se torna muito simples: invariavelmente o senso comum se encarregará de dizer ideológico aquilo que questiona o próprio senso comum. Trata-se, portanto, de um círculo vicioso baseado numa petição de princípio: ideológico é tudo o que questiona o posto, e o posto nunca será ideológico.
Quem, por exemplo, pretender, em nome da laicidade do Estado, retirar os crucifixos dos prédios públicos, estará adotando uma postura ideológica; em sentido inverso, a manutenção dos crucifixos nada terá de ideológico, mesmo sendo afirmação de crença na divindade – de uma divindade em particular –, porque homenagem a uma tradição cultural.
Crucifixos são um bom exemplo também porque as crenças religiosas parecem passar longe de qualquer ideologia. É sintomático que entre os defensores da Escola sem Partido estejam aqueles doutrinados e financiados por bilionárias organizações da direita americana, que optam pelo criacionismo para explicar a origem do universo.
Visto desse modo, o darwinismo é altamente ideológico. Claro que nem tudo pode ser reproduzido como o mestre pensa, e alguma noção de ridículo impede que o criacionismo seja abertamente defendido, quando até o papa diz que Adão e Eva não são reais. De qualquer maneira, afirmar que o homem descende do macaco já foi altamente subversivo, e em outros tempos não podia ser dito em sala de aula.
E se digo subversivo é porque encontrei esse par inseparável para ideológico: ideologia e subversão caminham sempre de mãos dadas, para desespero do senso comum. Por outro lado, aí é necessário ter alguma cautela, porque, embora, em tese, subversivo seja quem se volta contra o Direito positivado, na prática isso não é sempre verdadeiro, porque o próprio Direito anda impregnado de coisas inaceitáveis.
Acontece que, por circunstâncias da História, acabaram por ser produzidas muitas leis que são elas próprias subversivas, e por isso não podem ser toleradas pelo senso comum. Quem, por exemplo, lutar pela demarcação das terras indígenas será visto com a desconfiança e até o rancor que se destina aos subversivos e não escapará das acusações acerca da natureza ideológica de sua conduta, não importando o fato de estar ao lado da lei. Afinal, os índios querem desapossar quem trabalha honestamente e cumpre uma função econômica reconhecida por todos.
Direitos humanos, então, são algo absolutamente ideológico. Defender bandido é o ápice das posturas ideológicas, porque o senso comum não ideológico diz que bandido bom é bandido morto. Ainda outro dia ouvi de pessoa que, por dever de ofício, deveria preservar direitos fundamentais (mais uma coisa ideológica) uma petição de princípio: toma sempre partido da polícia, porque é do bem e nos defende, contra os bandidos, que são do mal e nos acuam.
Assim, se polícia mata bandido, não há que se fazer perguntas: está bem feito. Nesse caso, quando o Human Rights Watch diz que mortes causadas por policiais não são investigadas no Brasil, certamente também se trata de postura ideológica. O problema é esse: há ideologia demais no mundo, e até uma renomada organização internacional diz tais disparates, esquecendo-se de que este não é o lado do bem.
E assim segue a vida, com os arautos do pensamento único pretendendo proscrever a ideologia. Eu, que queria, como Cazuza, uma para viver, já ando me escondendo pelos cantos, enquanto o macartismo tupiniquim tenta impor seu senso comum.
Era para rir, mas é de chorar.
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Na imagem, o pensador ideologizando, porque pensa.
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