Começo com um duplo pedido de desculpas: pelo trocadilho e pelo retorno ao tema. O fato é que o tema me mantém preso.
É muita coisa acontecendo, notícias vindo de todos os lados, aí escrevo sobre o assunto, sou interpelado, começo a ser procurado por familiares de presos e me torno um ouvidor informal – involuntário e impotente – das suas agruras. Tudo isso me prende.
Deixemos de lado a explicação preliminar, que cria um suspense desnecessário: o tema é, mais uma vez, prisões.
Fixo-me nele, agora, por um estranhamento que senti quando, por ocasião da mais recente comoção, quiseram crucificar uma juíza que soltou o preso por excesso de prazo. Perguntei-me, naqueles dias: cumprir a lei agora é motivo de escândalo?
E fui investigar, naquele meu método anárquico: perguntei a colegas da área, abri alguns acórdãos e me dei por satisfeito. Ah, também integram a pesquisa as informações vindas dos familiares. Este material, ao mesmo tempo precário e revelador, me deixou surpreso, mas compreendi o motivo pelo qual soltar um réu por excesso de prazo é escandaloso.
É conveniente relatar como comecei a pesquisa: procurei um velho amigo, que sempre atuou na área penal. Ingenuamente lhe perguntei sobre os 81 dias, esquecido de que a reforma processual penal de 2008 mudou tudo. Ele deu um sorriso, entre irônico e desesperançado (tenho visto muitos sorrisos se desenharem desse modo), e disse: isso acabou, hoje ficam presos muito mais tempo e não são raros os casos de prisões preventivas de mais de um ano. Então – pensei – o preso cuja mãe me procurou está no lucro, porque ainda não completou um ano de cadeia.
Ainda ingenuamente, lhe perguntei se a reforma de 2008 não havia vindo para ampliar o direito de defesa, e ele respondeu: não é bem isso. É assim o meu amigo: me dá essas respostas enigmáticas que indicam um caminho, mas não tem tempo para me explicar a situação em detalhes.
Fui então procurar os Anuários Brasileiros de Segurança Pública e achei uma coisa interessante: no ano da alteração processual havia, no Rio Grande do Sul, quatro presos condenados para cada preso provisório; seis anos depois, em 2014 (último ano disponível), a relação estava em dois por um. O número de presos provisórios havia aumentado 66%, enquanto o de condenados havia caído 12%.
Nesse ponto, devo advertir que outros fatores podem ter interferido na relação, por exemplo, a soltura de presos do semiaberto, por causa da falta de vagas. Além disso, o número de presos de 2014 era 28.059 e no momento em que escrevo a SUSEPE informa em seu saite que é de 34.705, aumento de quase sete mil em dois anos. Mesmo assim, e sem saber quantos presos provisórios há agora (não sei se há contagem em tempo real), não errarei se disser que é ainda maior que em 2014.
Diria até que a reforma processual não tem tanto a ver com essa situação. Há outros motivos mais fortes. Há, por exemplo, o aumento da criminalidade, que de algum modo acompanha a crise econômica. Há também a crescente sensação de insegurança, que interfere nos julgamentos, seja pelo temor do próprio magistrado, seja pela pressão social por manter preso.
Há, em todo caso, uma tendência punitiva crescente, que extrapolou o momento da fixação da pena e focou também no tempo da prisão cautelar.
Aquelas coisinhas da Constituição, tipo presunção de defesa e direito à duração razoável do processo há muito tempo deixaram de existir, pelo menos do modo como as conhecíamos.
Aliás, como procurei acórdãos, devo dizer que muitos se referenciam no princípio da razoabilidade para manter a prisão, acrescentando que o tempo da prisão cautelar não é mera questão de aritmética. Também li que, se a demora da prisão não decorre de desídia da autoridade processante, ela está justificada.
Não sei bem se autoridade processante é o juiz ou o promotor ou os dois, mas essa justificativa tem sido utilizada para autorizar uma atrocidade praticada com os réus: a SUSEPE não apresenta o preso para a audiência, ela é redesignada para alguns meses depois (não há pauta), e o preso segue mofando na cadeia, por não haver culpa da autoridade processante.
Quer dizer: seu direito subjetivo de ser julgado brevemente não interessa; se o culpado pelo atraso não é o juiz ou o promotor, mas a SUSEPE, ele pode continuar preso (involuntariamente, penso em K., errante entre diferentes repartições, nenhuma delas responsável por seu processo).
E ele continua preso, em homenagem ao nosso medo de sermos assaltados, em homenagem à mídia que pressiona, em homenagem ao clamor popular. Tudo de acordo com o princípio da razoabilidade.
Direitos? Mas quem há de defendê-los nesses tempos de pós-democracia?
Sigo eu, então, preso com meu trocadilho.
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Poderão me perguntar por que escrevo sobre isso numa semana em que Guido Mantega foi preso no hospital e em seguida solto e em que o TRF-4 decidiu que alguns processos são diferentes dos outros. Não sei responder, mas talvez não haja tanta diferença entre a exceção e a regra.
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