Eu não conhecia Ailton Krenak, que ainda não era imortal, quando ele publicou as Ideias para adiar o fim do mundo. Fui pesquisar, e achei foto daquela cena inesquecível na Constituinte. Mas queria palavras, e encontrei artigos e entrevistas. Uma, muito boa, me chamou a atenção, mas não por boa: nela encontrei uma fala que me soou como um acorde dissonante.
Disse Krenak, reproduzindo a fala de um amigo: “não concordo de dizer para meu filho que tem 4, 5 anos da idade que ele precisa economizar água na hora de tomar banho, quando sei que as indústrias usam bilhões de litros d’água e ninguém manda elas diminuírem.”
E tirou sua conclusão: “Por que alguém não fala com a Coca-Cola para ela parar de usar a água? Por que que vão falar para seu filho? Por que as campanhas públicas, municipais, estaduais, diz para dona da casa fechar a torneira? É para criar um ambiente psicológico que despista a verdadeira razão do esgotamento das fontes de água pura.”
O raciocínio era perfeito: quem está destruindo o planeta é o capitalismo. São as grandes corporações e os pequenos políticos que fazem seu jogo. É o senador, é o governador, é o prefeito, ora revogando a legislação ambiental, ora derrubando árvores. Há um sistema engendrado para funcionar assim. O aquecimento global, que causa a enxurrada, e a monocultura, com todo o sistema de produção (sementes, adubo, veneno) controlado pelas multinacionais, avançando sobre as nascentes e margens dos cursos d’água, são um exemplo marcante disso.
O que, então, havia de dissonante na fala de Krenak? Havia que, ao corretamente apontar o dedo para o sistema que está na origem do caos, pareceu autorizar o filho do amigo a desperdiçar a água do banho.
Certamente não é o que pensa, e talvez eu possa ser acusado do famoso “tirou do contexto”, mas a fala me impactou, tanto que, passados alguns anos, hoje a uso para este texto.
A pouca água poupada pelo filho pequeno do amigo do Krenak não faria diferença diante dos bilhões de litros d’água gastos pela Coca-Cola, mas poupar água no banho teria sido importante para a sua formação ética. Do mesmo modo como não se pode construir um mundo solidário sem praticar a solidariedade, é impossível resistir à devastação climática sem buscar um modo de vida sustentável.
Krenak pareceu menosprezar a noção de sustentabilidade, ao pronunciar a afirmação que deu título à entrevista: “vida sustentável é vaidade pessoal”. Talvez haja algum problema com a palavra “sustentável”, tão facilmente apropriada para o faz de conta desse sistema que destrói o planeta.
Já contextualizada nos termos em que aqui a trato, a sustentabilidade é condição para resistir à degradação, que tornará o planeta inabitável para inúmeras espécies e inviabilizará a civilização humana, nos termos em que foi constituída há cinco ou seis mil anos.
Se interpretei a fala de Krenak como uma dispensa aos cuidados individuais com o planeta, isso talvez tenha ocorrido pela minha percepção de que a falta de uma real consciência ecológica nos leva a consumirmos os produtos da predação. E, porque isso nos desarma, impede que resistamos à prática predatória. Somos uma minúscula peça da engrenagem.
Foi ali que se deu o estranhamento, porque não consigo ver a possibilidade de resistência sem que as pessoas adotem uma maneira sustentável de viver.
Neste momento de tragédia no Rio Grande do Sul, em que se torna inevitável discutir, mesmo contra o desejo de alguns, quem são os culpados – e não tenho dúvida de que são o sistema econômico e os governantes que fazem seu jogo –, pensei para o texto que agora escrevo uma afirmação provocadora: os culpados somos nós.
Resolvi ser menos provocador, mas o sentido é este: estamos desarmados para resistir, porque não adotamos a ética ecológica como modo de vida. E isso nos torna culpados.
Nossos hábitos são constituídos por tantas coisas para além do chuveiro, desde a inofensiva luz acesa até as impactantes, mas irrenunciáveis, férias na Europa, que, pela régua da pegada ecológica, nos tornam um peso para o planeta.
Mas este é o grande problema: para vivermos a ética ecológica, temos de renunciar a hábitos. Quem, da classe média, podendo ter transporte individual, se dispõe a enfrentar o transporte público? (Claro que, ao dar esse exemplo, abstraio o proposital sucateamento do transporte público, por esses mesmos governantes liliputeanos.)
Quem se dispõe a comer menos carne? A evitar o uso de plástico? Em síntese, a consumir menos?
O fato é que usufruir menos, gozar menos, não são coisas facilmente aceitáveis. E aí caímos na grande armadilha que nos torna impotentes: nos falta a ética ecológica, arma imprescindível para lutarmos contra o aquecimento global e contra a destruição da natureza. Não podemos desejar um mundo preservado, se dele tiramos além da conta.
Esclareço, antes de alguém dizer que não se pode exigir contenção de bilhões de pobres do mundo, que consomem quase nada: falo de uma classe média cujo padrão de consumo se aproxima do americano ou do europeu, porque é esta que consome para além do que o planeta suporta.
O pobre que não tem chuveiro precisa do chuveiro, mas o filho do amigo do Krenak precisa ficar menos tempo no banho, não porque fará grande diferença na quantidade de água consumida, mas porque é isso que lhe dará a força ética para proteger o planeta. E, para combatermos a catástrofe que já chegou, precisamos de muitos filhos de amigos do Krenak: somente a partir dessa ética coletiva, transformada em luta, podemos ainda ter uma tênue esperança de que as coisas venham diferentes do fim anunciado.
Deixe uma resposta