“Ó de casa!” “Pois não?” “Boa noite, senhora! Um informante disse que nessa casa escondem droga. Viemos verificar. A senhora permite que a gente entre?” “Claro! Entrem sem cerimônia. Só peço que não façam barulho, porque as crianças estão dormindo.” “E o seu marido?” “Está trabalhando, é garçom.” Entram os policiais, meio tímidos. “Os senhores não acham melhor deixarem essas armas em algum lugar, pra ficar mais confortável? Não, do lado do berço não, vai que acordem. Sabe como é criança, vai querer mexer. Melhor deixar aqui na cozinha ou encostar no tanque.” “Obrigado, senhora, muito gentil.” “Mas, fiquem à vontade, não quero atrapalhar. Vou passar um café enquanto reviram as gavetas.” A água nem esquentou, e eles voltam para a cozinha. “A senhora vai ter de nos acompanhar, achamos essas trouxinhas embrulhadas numa calcinha.” “Mas, como? Nunca vi isso!” “É, mas não tem jeito, a senhora está presa. Tem com quem deixar as crianças?”
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Imagine-se juiz. O flagrante vem para você, e a história é mais ou menos esta. Você acredita nela? Você, sinceramente, acha possível esse diálogo civilizado, acha que a senhora da vila – claro, esqueci de dizer, e imagino que você não tenha percebido: a cena não é num apartamento de classe média – permitirá aos policiais entrarem na casa? Ou, ainda que, numa suprema concessão, abra as portas, isso não seja por puro temor? Se, de fato, você acredita, pode homologar o flagrante. Certamente, ninguém o comparará à velhinha de Taubaté, porque no Judiciário sempre acreditamos na Polícia. Afinal, se não pudermos acreditar nem na Polícia, em quem mais poderemos acreditar?
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Agora, vamos pensar um pouco diferente. Você continua juiz, mas não acredita em nada do que disseram. Quer dizer: não acredita nessa gentileza recíproca e tem certeza de que os policiais forçaram a barra para entrar. Mas houve a apreensão, nisso você acredita, porque está ali no auto. E aí, o que faz? Homologa o flagrante, porque a Constituição autoriza ingressar na casa, mesmo de noite, se nela estiver sendo cometido crime?
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Nesse ponto, vamos discordar. Muito já escrevi sobre isso, e preciso repetir. Uma coisa é entrar numa casa porque nesse momento está acontecendo um assalto, um estupro, uma tentativa de homicídio, outra são esses crimes permanentes, como guardar droga ou uma arma. E os que continuam achando certo homologar esse flagrante nunca me responderam uma questão singela: e, se não houver droga na casa, o que acontece? Nunca me responderam porque não têm resposta. Aliás, eles sabem a resposta: não acontece nada. A casa foi violada, nenhum crime havia e nada acontece. Quando há resultado, o validamos; quando não há, ignoramos. Aliás, esse ignoramos é literal, porque ninguém, exceto a vizinhança da vila, que não conta, fica sabendo. Assim, prisioneiros, nós, da razão cínica, validamos a invasão de domicílio. Validamos o que foi dito por policiais a uma mulher que ouvi, em cuja casa nada encontraram: na vila não precisa de mandado.
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Se volto ao assunto – e o faço com algum atraso, porque a notícia já tem um tempinho – foi em razão de decisão do Ministro Lewandowski, que determinou o trancamento de ação penal contra pessoa que havia sido perseguida por policiais e por eles levada para sua casa, onde lhes franqueou o ingresso, ocasião em que apreenderam certa quantidade de droga.
O fato é que, ao menos nessa decisão monocrática, parece ter havido um avanço em relação anterior do Supremo, sobre a qual manifestei minha dúvida sobre ter sido um passo à frente ou uma decisão perigosa. Nesse caso, e numa decisão por ora isolada, foi Lewandowski quem deu o passo à frente.
Mas é pouco para mudar uma prática consagrada. Enquanto o próprio Supremo não for mais enfático, seguiremos homologando esses flagrantes, e haja Trovão Azul para tantos presos. O fato é que não nos damos conta dos absurdos que praticamos. Não enquanto os praticamos. Minha esperança é que logo chegue o tempo em que o Judiciário veja o quão medieval é a prática. Isso, é claro, se não estivermos nós próprios nos encaminhando para uma nova idade das trevas, como às vezes temo.
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(Além de lincar a decisão do Ministro, linco três dos textos em que enfrentei a questão, nos pontos em que deles lembrei. A pintura é de Sallie Ashe.)
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