O que é mais democrático: parlamentarismo ou presidencialismo?
Muito antes do plebiscito de 1993, eu seguia uma lógica que considerava irrefutável: um governo formado por 594 pessoas (81 senadores e 513 deputados) é mais democrático que o governo de uma única pessoa, o presidente.
Claro que, mesmo então, imaginava que o raciocínio servia para uma situação ideal, para a qual deveriam ser cumpridos alguns requisitos, o principal deles a existência de partidos fortes, que pudessem dar ao Congresso uma feição que correspondesse a um retrato da inclinação ideológica do eleitorado no momento da eleição.
Isso existe, por exemplo, em vários países europeus que adotam o parlamentarismo: três ou quatro grandes partidos, com clara conotação ideológica, apresentam listas fechadas, oferecendo ao autor as opções que lhe permitirão saber exatamente que linha política resultará do seu voto.
Com esse modelo, além de evitar a eleição do que eu imaginava ser quase um Bonaparte, indivíduo único que por quatro anos concentraria o poder de conduzir a Nação, se asseguraria, numa ideia quase evolucionária, da democracia como processo de aperfeiçoamento constante, a representação pela maioria ideológica, com oscilações à direita ou esquerda a partir do centro, quase como uma barragem contra os solavancos da História, que podem nos jogar para a frente, mas também nos derrubar no abismo. Dificilmente, por exemplo, exceto em um quadro de total confusão política, um país parlamentarista elegeria um governo com a feição de um Trump.
Essa ideia exigiria ainda, para além de um modelo democrático moderno como se vê na Europa, um mundo relativamente estável, o que parece cada vez mais difícil. Mesmo lá, embora os sistemas eleitorais tenham até hoje passado por poucas mudanças, em vários países sucumbiram os partidos tradicionais que ofereciam as opções ideológicas tradicionais do mundo pós-guerra. O bom é que até agora foram, em muitos casos, substituídos por novos partidos ou movimentos que tentam dar conta das perplexidades desses tempos de crise. Desse modo, e usando uma linguagem liberal, o mercado eleitoral está se recompondo conforme as necessidades do momento histórico.
Não sei por quanto tempo a democracia resistirá nesse mundo em profunda crise, no qual a aparente falta de saídas econômicas, o aprofundamento da miséria e a iminência de desastres climáticos parecem nos dizer que estamos a caminho da barbárie, mas, até agora o sistema se mantém íntegro.
Voltando ao Brasil, se em algum momento tive a ilusão de que aqui poderíamos evoluir para um sistema que apresentasse partidos com cortes ideológicos nítidos e representações homogêneas, isso foi desmentido por uma prática que mostra um Congresso dominado por interesses fisiológicos, onde prevalece a lógica dos trezentos picaretas, com total diluição entre dezenas de partidos com baixas representações e, na grande maioria, sem robustez ideológica.
Não há cláusula de barreira que limite o número de partidos, e as opções oferecidas no âmbito da Câmara dos Deputados, para a qual a eleição é proporcional, são de nomes se sobrepondo aos partidos, o que enseja o lamentável voto na pessoa, que inviabiliza uma representação por cortes ideológicos. Mais que não representar o pensamento de cada ideologia num dado momento, esse parlamento geleia serve como fator impeditivo da politização da sociedade, que nos leva a um círculo vicioso, em que essa sociedade despolitizada segue a eleger parlamentos despolitizados.
Há que se ter cuidado, todavia, com essa minha referência à despolitização, à desideologização, a esse parlamento geleia, para que não pareça ter resultado em algo inócuo ou mesmo disfuncional. Pelo contrário, ao longo dos últimos anos, favorecidos por campanhas caras, financiadas por grandes corporações, cada vez mais se elegem deputados comprometidos com uma pauta neoliberal, com pequenas clivagens que permitem as sub-representações em grupos de interesse específicos, de que o triplo B (bíblia, boi, bala) é o exemplo mais notório, sempre compondo em torno da larga maioria que hoje dá sustentação ao desmonte do Estado brasileiro.
Isto é o trágico: o eleitor pensa que seu voto contribui para a construção de um parlamento que seja o espelho da sociedade, mas elege pessoas, não ideias, e as pessoas que elege são as melhor produzidas conforme as regras do mercado econômico, principalmente as mais caras, porque o dinheiro as fez chegar a mais gente.
Nessas condições, o parlamento é geleia apenas na aparência, porque, nesse seu perfil caótico e individualista, em que os partidos nada valem, e com a nítida postura de defesa dos interesses pessoais de cada parlamentar, facilmente se alinha ao poder econômico que financia as campanhas e faz lóbis milionários. Assim, há uma dupla face, em que de um lado se exerce vorazmente o interesse corporativo e mesmo individual, numa luta selvagem pela sobrevivência de cada parlamentar, e de outro, até como condição para a sobrevivência, o alinhamento aos grandes interesses.
Tudo isso acontece sob esse presidencialismo de coalizão, em que o presidente, qualquer um, sempre necessita submeter-se aos interesses venais do parlamento, como condição para governar.
Sob esse aspecto, de modo muito mais eficaz que qualquer parlamento europeu, nosso Congresso foi, ao longo dos anos, se transformando, para além de caudatário de interesses individuais imunes ao controle partidário, num comitê das grandes corporações. O sistema partidário e eleitoral brasileiros, de múltiplos partidos pequenos, sem fidelidade partidária e voto na pessoa, criaram, sob a aparência da representação pelo voto, uma genial correia de transmissão dos interesses do grande capital, em que evidentemente sempre sobra uma recompensa aos disciplinados parlamentares.
Nessas condições, aquela minha antiga ideia de que o parlamentarismo seria mais democrático, por representar proporcionalmente as diferentes clivagens político-ideológicas da sociedade num certo momento histórico, revelou-se absolutamente ingênua.
Sob esse aspecto, a eleição presidencial representa muito melhor as opções postas. Quem votar em Lula, Marina, Bolsonaro, Dória, Alckmin, Ciro ou outros menos cotados estará mais claramente votando em modos de pensar a política e de governar, e por isso, neste Brasil de 2017, exercendo efetivamente a democracia.
O parlamentarismo significaria, hoje, o definitivo sequestro da democracia pelo parlamento geleia. Não sei se passará, porque há muitos interesses em jogo, tensionando as opções, mas a ideia não destoa de uma tendência mundial de redução da democracia a um jogo formal, em que o poder em si é cada vez menos suscetível de ser influenciado pelo voto. Além disso, proposto neste momento, é mais uma manobra golpista, como aquela de mais de 50 anos, que tentou impedir João Goulart de governar.
E, como somos brasileiros, essa invenção parlamentarista parece vir acompanhada do descarte definitivo dos partidos, que permanecerão meros invólucros em eleições decididas pelo distritão, modelo buscado nas modernas democracias do Afeganistão, Vanuatu e Ilhas Maurício.
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Retirei a informação sobre os países que adotam esse modelo de texto publicado em Sul 21, que explica bem o funcionamento do distritão.
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