Fui a uma reunião, e ouvi, após me identificar na recepção: parou de escrever. Me vieram várias respostas, que não dei. Podia ser: escrevo sim, só reduzi a frequência. Ou: escrevo, mas o Facebook não me ajuda na divulgação. Ou ainda: relaxei, porque dei prioridade para um projeto ambiental. Ou, quase mal educado: pararam de me ler.
Havia mais duas ou três respostas menos cotadas, mas fiquei em silêncio. Não que alguma delas fosse falsa, mas nenhuma era totalmente verdadeira. O fato é que até penso em escrever, mas não engreno.
Hoje mesmo comecei um artigo. Pensei título: Nos olhos; pensei até uma ilustração, coisa que geralmente faço com dificuldade depois de terminar a escrita: foto dos chilenos cegados pela polícia de Piñera.
Começava assim: Parece que a inspiração veio de Israel, sempre tão competente em criar semelhantes tecnologias: a polícia chilena mira na cabecinha, usando, diferentemente da polícia de Witzel, balas de borracha e chumbinhos. Há, é claro, uma diferença com Israel, que dispõe de outras possibilidades, por exemplo bombardear: como os manifestantes não estão em Gaza, mas no centro de Santiago, não são os palestinos, mas o próprio povo chileno, a falta de repertório impõe o uso exaustivo deste meio. Por isso, o resultado: em um mês de protestos, o número de manifestantes que perderam, total ou parcialmente, a visão superou o número de 200.
Cheguei nesse ponto e empaquei. Não sabia para onde continuar. O próprio parágrafo dava muitas pistas. Sempre que escrevo Israel, fico tentado a uma declaração de solidariedade aos palestinos, a uma acusação contra os antes oprimidos que se tornaram opressores, uma lembrança das vítimas cujos filhos e netos viraram algozes.
Mas não era para isso o texto: queria falar da América Latina, da resistência dos pobres e do poder exercido à força pelas elites locais, associadas ao império americano. Aí já me vinha a imagem da índia boliviana, da índia equatoriana e da índia chilena carregando suas bandeiras. E em seguida me culpava por não lembrar dos negros haitianos, que lutam e morrem nas ruas de Porto Príncipe.
Assim minhas ideias seguiam erráticas, e não conseguia imaginar como faria para depois chegar àquela ideia que me acompanha há dias, de Bolsonaro e FHC serem as duas faces de uma mesma moeda.
Depois pensei em mudar a analogia: um time de futebol, cujo técnico tem um craque como Beckenbauer, mas, por circunstâncias da partida, opta por sacá-lo e botar em seu lugar um Brucutu. Mas aí piorou, porque não consegui pensar o nome de um jogador tão grotesco quanto Bolsonaro.
O fato é que queria dizer que nossa fé na democracia bate de frente no projeto de dominação, que vem do time em que FHC é titular, mas Bolsonaro pode entrar em campo se necessário.
Só que andava em círculos, porque já escrevi coisa semelhante alguns textos atrás. Também já escrevi, mas sempre penso que foi insuficiente, sobre meus ex-amigos que optaram pela barbárie, com aquele bordão “tudo menos o PT”. Talvez não tenha escrito nos que lavaram as mãos, também ex-amigos.
Essas frases fariam sentido se eu conseguisse dar uma unidade em que apontasse que o combate aos bolivarianos e ao Foro de São Paulo era uma cortina de fumaça que encobria o cinismo dos liberais e a cegueira ideológica dessa classe média. E não seria o caso de, nesse ponto, dar uma cutucada nos amigos de esquerda que tanto bateram na Venezuela, acreditando que se tratava de defender a democracia?
Me vinham mais ideias que descartava, mas lembrei que a menção à Venezuela seria adequada para denunciar o golpe da Bolívia, que eles, os liberais, a Globo e meus ex-amigos, dizem que não foi golpe. E aí lembrei que isso não é novidade, porque até hoje insistem que não deram golpe contra Dilma.
Como veem, ando mesmo com dificuldade de escrever, e não consigo passar do Chile ao Brasil, contextualizando com as rebeliões latino-americanas contra o neoliberalismo, e a saída à direita que é seu Plano B.
E, ao chegar ao Brasil, não deveria perder tanto tempo com a metáfora do FHC, mas falar do AI-5, defendido por Eduardo Bolsonaro e por Paulo Guedes, ou da Garantia da Lei e da Ordem, que Bolsonaro quer para que a polícia possa atirar impunemente em manifestantes brasileiros, quem sabe para também furar seus olhos. Ou matar, como talvez ele e Witzel prefiram.
De novo, tranquei, porque não poderia deixar de escrever sobre a absurda manipulação da investigação sobre o incêndio florestal em Alter do Chão. Mas, tem a ver com meu texto ou entraria de contrabando? Depende, poderia ilustrar a mecânica de exercício do poder que se inaugurou, que vai da proliferação de notícias falsas à perseguição aos movimentos sociais, passando pela instrumentalização do sistema de justiça (e aí lembrei do Lula).
Mas, se falasse dos incêndios, deveria também falar das mortes dos guardiões das florestas, indígenas e trabalhadores rurais, e da grilagem sistemática patrocinada pelo governo. E aí de novo desviar do assunto, ou mudar de país, porque lideranças indígenas estão sendo mortas aos montes na Colômbia.
Então me deu conta de que para isso pensei em outro artigo, que chamaria Veias abertas.
Pois não consigo escrever nem um nem outro, e esta minha reflexão sobre não escrever já está tão extensa que devo terminar.
Tenho uma vaga ideia de como terminaria o texto sobre a polícia chilena atirando na cabeça dos manifestantes – e me ocorre que o título poderia ser mudado para Ensaio sobre a cegueira. Seria uma metáfora sobre a cegueira ideológica, da qual não sofrem os manifestantes chilenos.
Mas não consigo escrever. Por isso parei.
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