Uma vez, na Argentina, em Cosquin, vários anos antes do golpe de 24 de março de 1976, e já em contexto repressivo, tentaram proibir Jorge Cafrune de cantar Zamba de mi esperanza.
Condensei a frase de Demétrio Xavier, que esta semana evocou a Ditadura Militar argentina, no seu excelente Cantos do Sul da Terra.
Segue sua fala: escutem e leiam a música e a letra de Zamba de mi esperança; não há nada perigoso, não há nada subversivo, não há nada atentatório, naquela música, a qualquer ordem estabelecida. Ou há?
Ouvi isso quando já pensava em palavras estigmatizadas, palavras proscritas e outras que tomam seu lugar. Se na Argentina, cuja ditadura viria a roubar crianças dos pais cujos corpos eram jogados no Oceano Atlântico, foi proibido ter esperança, os franquistas faziam sua saudação com viva la muerte.
Considero quase um sacrilégio ilustrar minhas inquietudes atuais com as tragédias argentina e espanhola, assim como penso não ter o direito de repetir Brecht, aquele que viveu tempos sombrios, e por isso me desculpo antecipadamente, mas, como Bobbio, só temo o pior por desejar ardentemente o melhor.
A História nos ensina a fazer isso: identificar a semente do mal, ver que o totalitarismo não se limita à baioneta e perceber que muitas vezes ele se anuncia com a elevação da intolerância a um padrão social, multidões que aquecem o ovo da serpente. Pode até não se consolidar como sistema, mas é chocado de mil maneiras, e a agressividade crescente contra o pensamento discordante é um aviso inconfundível.
Não vi ainda tentativas de proibir a esperança, ao menos não a palavra, mas já vejo ousadas investidas para extirpar uma cor da escala cromática, junto com a palavra que a designa.
Mas, se meu pensamento era sobre palavras estigmatizadas, há uma em particular que vinha me interpelando há tempos. Há menos de trinta anos, a Constituição surgiu como um compromisso que unificava a nação. Ainda que seu valor real tenha sido sempre subestimado, servia a um discurso de coesão, e nela se viam representadas aspirações de múltiplos segmentos sociais.
Com a Constituição, entrou também em nosso vernáculo uma nova acepção para a palavra valores, já não vinculada ao discurso da Marcha da família com Deus pela liberdade, mas a princípios norteadores de uma sociedade livre, justa e igualitária.
Pois, não sei se por paranoia, tenho sentido um certo desdém, uma desconfiança, quando se fala em Constituição, em valores, em princípios. Essas palavras parecem surgir como incômodos obstáculos à faxina inspirada pela ira santa contra o único mal do mundo, a corrupção.
Poderia fazer aqui uma digressão, para falar em corrupção como pretexto para outros fins, mas não quero me desviar do tema, e preciso fazer uma advertência necessária: essa estigmatização eu não a sinto em grandes manifestações, porque não as frequento, mas a vejo no próprio âmbito jurídico.
E os contorcionismos que aí se fazem são incríveis. Ninguém ali faria uma detratação aberta da Constituição, porque a esse ponto ainda não chegamos, mas vejo surgir um exército de juristas que passaram a reduzir a intimidade e a vida privada a institutos do processo penal. Ao invés de as verem como garantias, que só por exceção e mantido o sigilo podem ser vulneradas, passaram a propagar que o sigilo tem por finalidade apenas o bom andamento das investigações e, uma vez desnecessário para o fim da investigação, pode ser levantado. Esquecem totalmente que em algum lugar nessa história havia uma Constituição.
Tempos de borrasca hipnotizam, os messias que buscam depurar a Terra dos demônios multiplicam suas legiões de seguidores, e pessoas inteligentes e honestas rapidamente esquecem as lições que um dia tomaram.
Não sei se proibiriam Cafrune de cantar, mas fazem muito mal à palavra esperança.
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