Na minha infância há um sótão. O conheci pequeno, provavelmente levado por um irmão mais velho, para ver da claraboia uma enchente do Forromeco. Logo em seguida, o espaço me acolheu pelas leituras de antigas revistas e livros escolares, de capas duras e páginas amareladas, às vezes atravessadas por túneis de traças.
Foram anos de convivência, difícil no verão saariano sob o zinco, frequente no inverno ou nos dias de chuva, quando ali me esquecia por horas. Os livros, geralmente da Livraria Selbach, traziam miscelâneas de textos, em que se podia passar de Casemiro de Abreu a Esopo, de ufanismos pátrios a lições morais.
Como cada texto tinha uma ilustração, os folheei antes mesmo de me alfabetizar, e se fecho os olhos ainda vejo cenas da Guerra dos Guararapes. Onças e índios também apareciam em suas páginas, e na minha taxonomia infantil os índios, selvagens como as onças, estavam mais próximos delas do que deste pequeno leitor.
Selvagem não era bom. Os livros escolares distinguiam animais domésticos de selvagens e úteis de nocivos, e dificilmente se quebrava a equivalência doméstico = útil, selvagem = nocivo. Uma das raras exceções de animal selvagem e útil de que recordo era a muçurana, cobra do bem, por se alimentar de outras serpentes. Acho que esse texto era seguido pelo da Águia de Haia, nesse caso não um animal, mas Rui Barbosa, que calara a conferência internacional por sua erudição. Que orgulho patriótico, saber que, antes de se pronunciar, perguntou em que língua queriam ouvi-lo!
História que nunca faltava era a dos bandeirantes, ilustrados com vastas barbas, chapelões na cabeça e arcabuzes nas mãos. O resultado do que faziam não era muito diferente daquele dos mocinhos de filme americano que via na televisão do vizinho, porque, derrubando a floresta, matando onças e índios, construíam nossa pátria amada, esse gigante continental, que um dia seria uma potência tão grande quanto a dos irmãos do norte.
Os livros eram velhos, mas estavam de acordo com o espírito da época em que os li, na qual um discurso de integração nacional dava suporte à construção da Transamazônica, que venceria o inferno verde. Lembro de propagandas de motosserra tomando páginas inteiras de revistas.
Os anos passaram, na verdade se vão décadas, mas de vez em quando as leituras do sótão reaparecem. E não só por nostalgia: vêm também porque fatos de hoje parecem me transportar para os textos de então, como sonhos distantes, que saem daquelas folhas esmaecidas e se materializam como assombrações.
Claro que nada é como antes, a começar pelo fato de que se consolidou o discurso da dívida histórica em relação aos índios. Do mesmo modo, há uma forte consciência ecológica, e hoje ninguém mais se atreve a defender algo como a derrubada da floresta amazônica.
Mas uma coisa é o que se diz, outra é o que se faz, e não se espere que, passados quase trinta anos da Constituição, os indígenas encontrem compreensão na luta pela demarcação de suas terras; é mais fácil que continuem sendo mortos, e sem a indignação que alcança os latrocínios da cidade. Afinal, os motivos são relevantes: se os livros do sótão enalteciam a pátria pela produção de cana-de-açúcar e algodão, agora precisamos da soja e da carne para construir com commodities este país de um futuro cada vez mais remoto. Por que deixar que os índios atrapalhem?
Passados séculos, continuamos esse discurso, que não pode ser atrapalhado por pretensões territoriais dos índios, e os fazendeiros encontram no nosso silêncio conivente, quando não na nossa expressa adesão, legitimidade para formar milícias que atirem contra os renitentes selvagens.
As histórias de mortes de índios são tão corriqueiras quanto a violência urbana. Faz tempo que me culpo por não lhes destinar um texto, a pequena solidariedade de blogueiro pouco lido.
Agora mataram um líder guarani-kaiowá no Mato Grosso do Sul. Queria escrever, mas não encontrava o ponto.
Então veio a notícia da onça de Manaus, aquela acorrentada para ornamentar a passagem da tocha olímpica e que não se conformou em fazer parte do espetáculo. Aprisionada por nosso glorioso Exército para servir de símbolo de sua bravura, foi morta a tiros por falta de colaboração.
Foi o que me transportou de volta ao sótão e àquela taxonomia primordial, em que onças e índios se equivaliam e morriam juntos. Se aqueles livros ainda existem, as bisnetas das traças que conheci devem se alimentar de histórias que continuam a acontecer.
Então vejo Antônio Raposo Tavares usar o arcabuz para matar Clodiode Aquileu Rodrigues de Souza, e em seguida vejo Domingos Jorge Velho atirar na onça Juma.
Cresci, o sótão ficou lá, mas os bandeirantes continuam a fazer o Brasil grande.
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Na ilustração, Domingos Jorge Velho, por Benedito Calixto.
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