O triste fim do perplexo marciano

Não sei quem a inventou, mas aquela imagem do viajante marciano que chega à Terra e se espanta com o que aqui acontece é genial. Conseguiu, quem a teve, criar uma possibilidade perfeita de crônica das nossas incoerências, a partir de um personagem que, por nada saber de nós, se espanta e, a partir de perguntas aparentemente ingênuas, desnuda o nonsense que aqui encontra.

E não tenham dúvida de que o Brasil é um dos destinos favoritos dos simpáticos turistas do planeta vermelho. É de um deles que quero falar. Pousou em Brasília por esses dias e, como invariavelmente acontece com os marcianos, logo encontrou um interlocutor solícito para lhe explicar as coisas.

Sensitivo como são os marcianos, logo percebeu um frenesi, esse ar cheio de descargas elétricas, e quis saber o que acontecia.

— É o processo de impeachment – disse o brasileiro, que chamarei de Zé.

Claro, os habitantes de Marte não conhecem nossa cultura, e por isso o Zé teve de lhe dar algumas explicações sobre nossa democracia, o fato de termos presidente que elegemos a cada quatro anos e que o impeachment é um meio excepcional de tirar presidentes durante o mandato, quando cometem crimes de responsabilidade.

— E por que querem tirá-la? – perguntou o marciano.

— Por causa da corrupção.

— Ah, ela roubou! – foi sua conclusão lógica.

— Não é bem isso – respondeu Zé – até que procuraram, mas contra ela ainda não acharam nada. O que ela fez foram pedaladas fiscais.

E dê-lhe nova explicação ao marciano: as pedaladas fiscais consistiram no pagamento de programas sociais com dinheiro de bancos públicos, com devolução do dinheiro no exercício seguinte.

— Deve ser muito grave, isso.

— Até que não era. Antes dela, outros fizeram, e nunca houve reclamações. Mas agora estão ficando mais rigorosos com essas maquiagens.

— Então ninguém mais está fazendo?

— Na verdade, vários governadores também fizeram, mas só ela tem processo.

A essa altura, o marciano já estava boquiaberto, mas pelo menos sabia que há um crime de responsabilidade chamado pedalada fiscal. Aí o Zé pacientemente explicou que pedalada fiscal não é bem um crime de responsabilidade.

— Mas então, por que ela é processada?

Nosso brasileiro volta ao tema da corrupção, diz que estão investigando gente do partido dela, que ninguém mais aguenta tanta roubalheira, essa conversa toda que já conhecemos.

— Então ela é do partido dos desonestos, e os dos outros partidos são honestos?

— Eu não disse isso, mas por algum lugar a gente tem que começar.

O marciano não entendeu bem como se podia destituir por crime de responsabilidade quem não tinha cometido crime de responsabilidade, para acabar com a corrupção mesmo que ela não fosse acusada de corrupção, mas a resposta tinha lógica: tem que começar por alguém.

— E, se ela sair, quem fica no lugar dela?

— Fica o vice.

— Ele não fez pedalada fiscal?

— Ele assinou uns documentos, mas parece que não tem culpa, porque não leu.

— E ele não é corrupto?

— Houve uns vazamentos sobre o porto de Santos, mas ninguém fala nisso, e não tem processo.

Nova necessidade de explicação: tinha que dizer ao marciano que vazar é tornar pública uma informação que é secreta e não devia ser liberada. Ao saber disso, ele achou muito justo que vazamento não desse origem a nada mais grave. Como o Zé viu que o marciano já palpitava – talvez efeito do fuso horário ou da pressão atmosférica –, achou melhor nem falar sobre o efeito que os vazamentos já haviam produzido em nossa terra.

Pelo menos, estava tudo certo com o vice que assumiria: assinou sem ler e não é acusado.

Aí nosso curioso visitante quis saber como funcionava o processo, quem era o juiz que o presidia, e por aí vai.

— Quem preside é o presidente da Câmara dos Deputados.

— Este é honesto?

Silêncio do Zé, mas, como eu disse, os marcianos são sensitivos, e nosso querido viajante amarelou mais um pouco.

— Quem mais julga?

As explicações são cada vez mais curtas, porque Zé vê que não fazem bem ao visitante; além disso, mesmo solícito, não pode ficar o dia todo dando explicação para marciano.

Mas ele insiste: — São honestos?

— Muitos deles são processados, outros são acusados, mas ainda não foram condenados.

A essa altura, o verde do marciano já está mais para verde-limão. Siciliano.

— E como descobriram as pedaladas?

— Foi o Tribunal de Contas que apurou.

A essa altura, o brasileiro engoliu em seco. Isso não ia dar em boa coisa e não aguentava mais ouvir “são honestos?”. O marciano, embora já desesperado, mas ainda assim sereno, como são as criaturas espaciais, não perguntou.

Ele próprio tinha se convencido de que sua natural curiosidade não o levaria a lugar nenhum, e, extenuado, havia decidido encerrar essa entrevista, mas resolveu engatar uma última pergunta, que lhe foi fatal.

— E o povo, o que acha de tudo isso?

Caiu quando estava no meio a frase em que Zé lhe respondia que o povo estava feliz, porque ia acabar a corrupção.

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