O texto que não escrevo

Várias vezes nos últimos meses me vi diante da tentação de escrever sobre os paneleiros e sempre desisti. Fico indeciso entre frases mais solenes e a pura ironia, e isso é suficiente para deixar para depois. O fato é que o tempo passa e continuo aqui nesse impasse.
Sei que escrevo de um certo lugar, cada vez mais identificado pelos analistas das redes sociais e pelos estudiosos da pós-verdade, que veem grupos fechados, presos em seu quadrante ideológico e surdos para o que vem de fora. Por isso, sabendo que, de regra, quem me lerá serão somente aqueles que por definição tendem à afinidade com minhas ideias, tanto faz a forma. Talvez alguma ironia seja mesmo melhor, porque temos a necessidade de cutucar o outro lado, nos vingarmos de quem vestiu a camiseta da seleção, dizermos viu o que vocês fizeram?, assumirmos aquele ar de superioridade de quem, mesmo derrotado, está do lado certo.
Confesso que sou mesmo fraco para uma ironia, e, quando interpelado pela ideia de uma, me sinto como aquele alcoólatra de vida inteira a quem oferecem um vintage.
Mas também aprendi que as ironias ferem, magoam, até mesmo afastam quem se sente atingido. Lembro de minha última conversa com um ex-amigo, encerrada com um odeio tuas ironias.
Aliás, se agora volto para a primeira frase, vejo que já comecei assim, dando o nome paneleiros e falando da minha tentação em escrever. A palavra tentação parece trazer em si um convite solerte ao prazer proibido da provocação.
Se me segurei e nunca enveredei por esse caminho, é porque senti que devia tomar outro, mais sério, de tentativa de compreensão, quase um ensaio sociológico ou um retrato psicológico das pessoas que nesta segunda década do século XXI – e não só no Brasil – se viram seduzidas por uma direita populista e agressiva, que parecia morta desde a derrota do fascismo.
Mas aí me surge outro problema. Na verdade, um duplo problema: reflexão dessa natureza exigiria tanto um tempo quanto uma base teórica de que não disponho. Posso, no máximo, dar umas pinceladas, identificar o fenômeno, não muito mais que isso.
Enquanto o texto não vem – e talvez nunca venha – o máximo que posso fazer é escrever sobre o não vir do texto. Posso, por exemplo, dizer em que circunstâncias lembro de escrevê-lo. Por que a tentação – veja de novo a palavra – me atacou nos últimos dias? Aí penso que foram múltiplos fatos que, ao deles tomar conhecimento, me levaram a pensar na incoerência do silêncio de agora diante do barulho de antes. Mas logo vejo que essa explicação é falsa.
Sim, porque o que mais me impressionou nos últimos dias não foi esse samba do crioulo doido, em que vi uma repentina coincidência nos propósitos da esquerda mais combativa e da direita mais alucinada em pedirem o impeachment de Gilmar Mendes – ainda que por motivações diferentes, daqui a pouco comecei a ver uns compartilhando textos dos outros.
Também não foram os terríveis retrocessos que estão sendo pensados na legislação trabalhista e na previdenciária. Claro, cada uma dessas coisas me leva a pensar no que aconteceu em 2016, me traz inteiro o clima de que falo e poderia me levar a escrever o texto.
Mas nada disso me provocou tanto a escrever quanto a questão indígena. Sei bem que os índios vivem longe do Brasil urbano e os poucos que vemos, talvez com o canto dos olhos insensíveis fixados naquela indiazinha ranhenta e barriguda, sentam em calçadas com seus cestos. Eles não fazem parte da nossa vida, e até mesmo a esquerda tem dificuldade para se lembrar deles. Quando escrevi Onças e índios, fiz uma ponte com minhas fantasias infantis, porque não conseguia imaginar nada mais concreto.
Visto por esse lado, os índios seriam a última razão para servir de pretexto para um texto sobre – vá-lá, rendo-me à ironia – paneleiros. E o interessante é que paro neste momento da escrita para tentar eu mesmo compreender que improvável sinapse me impõe essa associação.
Paro, penso, e chego à conclusão de que a chave é uma terrível insensibilidade social, uma espécie de letargia, talvez até uma psicopatia coletiva ou um autismo social, associados a um pensamento reducionista, pelo qual o que interessa somos eu e os da minha classe de semi-ricos, de aspirantes a semi-ricos e de amigos dos semi-ricos, para quem o mundo deve ser moldado de modo a produzir nosso bem-estar.
Evidentemente, não falo aqui dos paneleiros pobres, muitos dos quais devem estar sinceramente arrependidos, enquanto outros engrossam, pelo seu vazio de perspectivas, o modo fascista de pensar e agir.
Os semi-ricos também podem ser fascistas, mas de regra seu individualismo vazio e sua razoável formação intelectual lhes permitem compreender o que significam esses novos heróis. Desprezam Bolsonaro por sua primariedade e selvageria e não gostariam de vê-lo presidente – para eles, até Dória seria melhor –, mas aceitam votar nele para que não seja Lula.
Mas havia chegado aos índios como mote e desviei para os semi-ricos, chegando até mesmo a Bolsonaro. Bolsonaro, do PSC, partido do Pastor Everaldo e Marco Feliciano, que ganhou de presente a FUNAI, dada pelo ministro ruralista Serraglio, o mesmo que queria evitar a cassação de Cunha por serviços prestados e que reconhece bandidos pelo olhar.
Tudo isso, enquanto uma CPI comandada por ruralistas indicia quem defende os índios, enquanto, de norte a sul, eles continuam sendo chacinados sem que nada se faça contra os autores dos crimes. (Mas ai do pivete que ameaça a tranquilidade do semi-rico!)
Demarcação? Não, eles já tem terras demais e nem ao menos as cultivam. Precisamos de mais bois e soja para construir o nosso progresso. Mais bois, mais soja, menos Amazônia, menos índios. Eles que fiquem confinados em seus guetos. E, na hipótese improvável de algum filho de semi-rico descobrir na escola o nome de Bartolomeu de Las Casas, dirão que ele fala de coisas acontecidas há quinhentos anos, bem longe daqui.
A essa hora, o leitor já percebeu o motivo pelo qual não posso escrever sobre os paneleiros: vejo seu espírito presente em qualquer tema, mesmo os mais improváveis, aqueles em que o silêncio das panelas guardadas é o verdadeiro retrato de uma postura que prefere o recolhimento.
Muitos perguntam – e aí a ironia é dos outros – por que as panelas silenciaram. Talvez porque esta seja a atitude normal de quem as bateu. Quando tentava convencer um conhecido com esse perfil a aderir à mobilização de 28 de abril, ele me respondeu agressivamente, dizendo que não precisava ser lembrado dos efeitos arrasadores da reforma da previdência, que ele próprio seria muito prejudicado e era contra a aprovação. Dito isso, seguiu para o trabalho, irritado com os que interrompiam o trânsito.
Ele queria trabalhar em paz, para receber honestamente seu ganha-pão. Ser atrapalhado e ainda por cima sentir no ar a insinuação de que nada fazia contra a reforma da previdência era demais. Mobilização não é algo que esteja em seu DNA. Mobilização é coisa para os radicais, que defendem ideologias. Ou então – exceção única – para combater os radicais, esses corruptos, demagogos, que ficam usando os pobres como massa de manobra para seus propósitos. E para isso nem ao menos é necessário ser paneleiro; basta envolver-se naquele bater de panela simbólico, aquela cumplicidade silenciosa, mas participante, que, ainda que neguem a paternidade, resultou nisso que aí está.
Pronto, vejo que escrevi um texto, até mais longo dos que costumo escrever. Confuso como são os textos de quem não sabe o que nem como dizer. Com uma ironia que não deveria ter, e que tenho de descobrir por que me toma. Um dia conseguirei escrever melhor sobre o tema. Por ora, fico com a impressão de que teria sido melhor dedicar mais palavras aos índios, que precisam mesmo é da solidariedade dos não paneleiros.

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