Como o Judiciário chegou a esse ponto? Foi a primeira pergunta da entrevista. Olhei surpreso para o pesquisador, mas ele não me ajudou: cabia a mim responder também qual era o ponto.
Demorei a engrenar, falei muito e certamente não disse tudo. Escrevendo aqui, talvez lembre um pouco do que disse, esqueça outro tanto e diga coisas que nem ao menos falei. Ou até mesmo mude algumas coisas.
Está claro que a pergunta não era neutra: seja pelo enunciado em si, seja porque sabemos bem o ponto em que estamos, não podia ser coisa boa. Então, responder a pergunta significava falar do golpe, do Supremo, da Lava Jato, do endeusamento de Moro. Significava, em suma, tentar entender qual foi o papel do Judiciário nessa história e, pressupondo que foi relevante, como se habilitou a representá-lo.
Como na entrevista, não sei por onde começar, e engreno, desajeitada, uma conversa há muito esquecida, sobre o sistema de poder, que prefere a persuasão, mas pode apelar para a força, quando necessário. Reconheço, encabulado, que acreditei na democracia, esquecendo a antiga lição de que a elite, sempre seguida pela classe média que pensa ser elite, adora a democracia, mas só quando não atrapalha. Em períodos de bonança, a democracia funciona bem; em períodos de crise, precisa ser descartada.
O descarte pode acontecer com as baionetas, mas isso é muito traumático. Melhor ser com a caneta, que tem a vantagem de criar um simulacro: faz parecer que ainda há democracia onde já não há. Ou então, conforme o receituário pós-democrático, faz seguir o jogo, após excluir quem deve ser excluído, agora com regras mais restritivas, porque cada vez menos a economia ajuda.
E o que isso tem a ver com a pergunta do entrevistador? Tem que foi a caneta do Judiciário que fez o serviço, ou ajudou o Parlamento a fazê-lo. Não foi o que Romero Jucá adiantou, sem saber que era gravado?
São tantos os episódios havidos no STF, que é difícil lembrar todos: a inusitada decisão de Gilmar Mendes de proibir a posse de Lula como ministro; o discurso de Celso de Mello contra Lula enquanto silenciava em relação ao criminoso vazamento da interceptação telefônica; a prisão preventiva de Delcídio por Teori; o retardamento da decisão do mesmo ministro sobre o pedido de afastamento de Cunha; o voto de Rosa Weber pelo princípio da colegialidade e muitos et ceteras.
Mas o Supremo é apenas a ponta de cima, onze ministros vindos de indicação presidencial, enquanto o Judiciário tem um corpo de quase 20 mil magistrados ingressados por concurso, integrantes de uma carreira profissional.
Foram poucos – e certamente não dão uma amostragem segura do que é a magistratura – os juízes que, associados a membros do Ministério Público, protagonizaram a Lava Jato, mas, por muito tempo – e para muitos ainda agora –, foram vistos como verdadeiros heróis entre seus pares. Selfie com Moro era um troféu, e os poucos juízes que se atrevessem a fazer a mínima crítica sofriam imediato linchamento moral.
Claro, não havia ainda a Vaza Jato, com suas revelações de abusos trazidas a conta-gotas, mas muito antes do Intercept, em tempo real, os métodos pouco ortodoxos da turma de Curitiba já estavam escancarados.
Não era estranho um juiz de lá ser competente para julgar um sem número de fatos acontecidos em outros lugares? Não havia algo de errado, quando, já no início da operação, a imprensa de todo o Brasil dizia que o objetivo era Lula? Aquele vazamento fatídico, que fez a classe média bater panela na hora do Jornal Nacional, não foi escandaloso para ninguém? E todos os vazamentos seletivos, inclusive antes de eleições importantes? E as infindáveis prisões provisórias, só revogadas após o acordo de delação, que não apenas reduzia a um décimo a pena do delator, como dava um desconto no valor a ser devolvido?
O fato é que, se o Supremo e outros tribunais – STJ e TRF4 – deixaram que rolasse, a grande maioria dos magistrados de carreira aplaudiram, enquanto torciam para que acontecesse o resultado desde o início desenhado.
E como explicar isso na minha já longa resposta ao pesquisador? Ensaiei uma análise sociológica, que era necessária, mas, como se verá, não suficiente.
É importante compreender o lugar que os juízes ocupam na sociedade, para saber como pensam. E é necessária uma dupla visão: do geral e do específico. No geral, são parte da classe média alta, num país que tem uma das maiores concentrações de renda do mundo: ganham bem, moram em condomínios de classe média alta, têm carro de luxo, viajam à Europa, frequentam clubes de elite, os filhos estudam nos colégios mais caros. Em suma: pertencem a uma classe social e pensam o mundo como integrantes dessa classe.
Nesse lugar social, se veem diferentes dos pobres, e superiores a eles. Na vida, os pobres servem para realizar os serviços subalternos; no fórum, lhes é reservado paternalismo na Vara de Família e rigor na Vara Criminal. Na vida como no fórum, a recompensa ao pobre dócil é a benevolência e o castigo ao pobre rebelde é a condenação.
E, principalmente, o mundo do pobre deve ser outro. Ele não pode frequentar aeroportos ou universidades, porque, mais que contaminar o espaço, ameaça o lugar da classe média; já como um assaltante ou homicida, ameaça sua segurança.
E um governante em que se identifiquem os defeitos do pobre inculto, atrevido a ponto de adotar políticas inclusivas, mesmo que de alcance limitado, ocupa simbolicamente esse lugar. Essa intolerável ousadia de uma classe desperta os piores sentimentos e exige punição.
É compreensível, portanto, que, numa inversão lógica, desde sempre, e antes mesmo de descobrir o crime, se tivesse o nome do culpado. Era este – e não outro – que tinha de ser condenado. Ademais, as seguras fontes de informação de que essa classe se alimenta – Jornal Nacional e Veja – já haviam demonstrado a culpa.
Mas a explicação sociológica não se esgota aqui. Há que se avaliar o que em 1988 foi considerado uma grande conquista democrática: a independência judicial, que colocava o Judiciário em patamar de igualdade com Executivo e Legislativo, assim permitindo o sistema de freios e contrapesos próprios do Estado Democrático de Direito então consagrado. Com a independência, veio o autogoverno e a autonomia financeira.
Contudo, o que foi uma conquista, tornou-se também um problema, porque, nesse sistema de freios e contrapesos, o Judiciário tornou-se controlador, mas ficou livre de controle. Tão livre de controle, que, na cúpula, nem ele próprio consegue se controlar. Exemplo disso está na prática, contrária ao Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, de os ministros permanecerem com autos em seu poder por anos, sem que ninguém consiga fazer o processo andar. É uma prática que se estende à presidência da Corte, que tem o poder de não pautar o que não lhe interessa. Foi o que aconteceu, por exemplo, em processos cujo julgamento poderia ter como consequência a libertação de Lula.
Como provocação, se poderia dizer que recentemente se revelou um freio eficaz ao Judiciário, no tuitaço do General Villas Boas, à véspera do julgamento em que Rosa Weber deu o famoso voto em que invocou o princípio da colegialidade, e na nomeação de um general para chefiar o gabinete do presidente do Supremo. Mas isto são manifestações da perda de substância democrática em nosso país: não há freios democráticos, mas os da caserna, que, com sua presença não tão discreta, ocupa esse papel.
Por outro lado, o autogoverno e a autonomia financeira propiciaram as condições para que em alguns momentos se acolhessem demandas corporativas, numa verdadeira legislação em causa própria, como aconteceu na decisão liminar de Fux autorizando o pagamento do auxílio-moradia.
Nesse ponto, fico a imaginar a tensão que se criou entre o desejo democrático da Constituinte e o interesse de casta de tantas carreiras hospedadas pelo Estado patrimonialista (é também o caso dos militares e o de outras carreiras jurídicas). O fato é que, se o Constituinte pensou um Estado democrático, capaz de superar o patrimonialismo, os interesses corporativos tiveram o trânsito facilitado pela falta de mecanismos de contenção nessas inovações constitucionais de natureza democrática.
Paralelamente a isso, e reforçando o caráter de casta, o ingresso na magistratura se tornou mais difícil. Além da multiplicação dos candidatos, hoje existe a figura do concurseiro, que se dedica anos à preparação ao concurso, o que não pode ser feito – ao menos não de modo tão eficaz – por quem depende do trabalho para sobreviver. Concurseiros viajam o país para fazerem suas provas, em busca de uma carreira estável e bem remunerada, cada vez mais rara em tempos de liberalismo extremado, no qual mesmo pessoas com curso superior passam em sua maioria a fazer parte do precariado. O ingresso, quase impossível aos pobres, assegura um lugar social privilegiado, sob as asas de um Estado que para isto ainda é protetor, com todas as condições materiais e ideológicas para dar as costas às dores de quem busca socorro no Judiciário.
Além de serem, como classe, integrantes do topo da classe média, o lugar que ocupam no Estado é o de casta. Trata-se de uma condição que determina um modo de ver o mundo, uma ideologia que orienta os desejos e medos de quem está nesse lugar.
Essa a minha narrativa. Em algum ponto dela, o entrevistador me chamou a atenção para o fato de que existe um sistema jurídico a ser seguido, um conjunto de normas que constrangem o julgador e lhe estabelecem limites, de modo que lhe é impossível tomar decisões baseadas unicamente em sua vontade. Pois é aí que entra minha observação de que a análise sociológica, embora necessária, é insuficiente.
O fato é que, se, naquilo que muitos chamam de pós-democracia, o exercício do poder já não se submete aos limites do Estado Democrático de Direito, cria-se um novo modo de exercer a jurisdição, em que as antigas regras não valem mais.
Isso acontece de alto a baixo. No Supremo, pode vir justificado com falácias elegantes, como “leitura moral da Constituição”, “variáveis metajurídicas” ou “discricionariedade transparente”; nas instâncias inferiores, o voluntarismo não necessita de tanto verniz. Às vezes nem ao menos é necessário construir argumentos jurídicos, bastando análises superficiais da prova, a partir de uma predisposição psicológica a proteger-se do réu que ameaça nosso mundo dourado e dele se vingar preventivamente pela ameaça que representa.
O livre convencimento motivado funciona assim: há inimigos de quem a sociedade deve ser protegida, e se, para isso, os caminhos ortodoxos não ajudam, outro caminho há de ser trilhado. Porque os fins justificam os meios.
Se o Estado pós-democrático necessita de Poderes pós-democráticos; se o Judiciário pós-democrático necessita de juízes pós-democráticos, o lugar de classe por eles ocupado serve de garantia para que cumpram bem o papel.
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Não sei se tem alguma coisa a ver com este texto, mas o título de cidadão honorário concedido pela Municipalidade de Paris a Lula teve por justificativa o fato de ter sido condenado após uma acusação politicamente instrumentalizada e com evidências de confisco da democracia no Brasil.
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