O espelho

Uma das primeiras visões matinais é a do nosso reflexo no espelho. Nos miramos e nos reconhecemos, dia após dia, sempre iguais. E nos reconhecemos justamente porque permanecemos iguais. O rosto roto por uma noite mal dormida, as olheiras da farra noturna, o cabelo desalinhado ou a espinha intrusa são pequenos acidentes que não se repetirão no dia seguinte, e continuaremos iguais.

No entanto, mudamos. Um dia descobrimos uma ruga, outro dia os primeiros cabelos brancos, depois que a pele perde o viço. Alguns deixam acontecer, outros aplicam botox, usam tintura, e logo nos acostumamos com a nova imagem do espelho, que no mais muda de modo imperceptível. Esta imagem nos reflete, nos identificamos com ela e, por essa inata e inconsciente capacidade de adaptação, a sentimos perene. Víssemos um dia, tal Dorian Gray, nossa imagem da juventude, não a reconheceríamos como nossa. A ilusão que temos é de não mudança, é de familiaridade com a imagem que o espelho nos mostrou hoje.

Não é diferente o modo como vemos o mundo. Todos os dias o vemos igual. O nosso tempo é o tempo de sempre, ainda que há vinte anos a maior parte de nós não tivesse telefone ou internet. Quando chegávamos em casa à noite, podíamos ler um livro, ouvir uma música, ver televisão, mas não podíamos nos conectar ao mundo, nem mesmo para falar com um amigo ou combinar uma balada. Isso não faz tanto tempo, mas parece estar em algum longínquo lugar do passado e ser uma falsa memória da nossa própria vida, que é vivida pelos padrões de hoje e parece ter sido sempre a mesma.

Do mesmo modo vemos a História. O terror que a Europa viveu na primeira metade do Século XX não está muito mais presente para nós que as Guerras Púnicas. Comunismo e nazismo ainda são palavras presentes, mas muito mais como desqualificações do interlocutor de quem divergimos, como enunciado na Lei de Godwin. Não são mais que palavrões vazios, remotamente associados à ideia de totalitarismo e maldade, sem aderência ao mundo de hoje, que nosso espelho revela igual, dia após dia.

Mas há uma coisa para a qual a analogia do espelho não nos serve. Ele é implacável conosco, haverá momento em que botox e tinturas nada resolverão e nossa decrepitude, prenúncio do próprio fim, também nos será revelada.

Já a História pode ter idas e vindas, e, salvo se confirmem as não tão absurdas previsões catastróficas de alguns ambientalistas, não conduz a Humanidade para um fim próximo. O que passou pode voltar, seja como farsa, seja como tragédia. Ainda que não da mesma forma, porque a tecnologia de hoje não é a de anos atrás, ainda que não na mesma intensidade, pode voltar. Ou podem vir novos totalitarismos, aparelhados por toda essa tecnologia da informação, como muito já foi pensado na Literatura e no Cinema. Quem não leu ouviu falar, ainda que pela Globo, do Big Brother.

Como essa ideia de permanência nos faz sentir comum e familiar tudo o que ocorre em nossa volta, mesmo dias de maior agitação parecem não destoar significativamente dessa vidinha de todo dia. No máximo, os vemos como dias de porre, em que, inebriados, saímos um pouco da nossa moderação diária e dizemos – nós e nossos amigos – algo acima do que de regra diríamos. Tudo, com certeza, porque fomos provocados a isso e apenas reagimos.

Mas está muito longe de nós pensar que esses nossos pequenos excessos, que temos certeza de serem absolutamente justificados, poderão alterar o reflexo do espelho.

Se, no automático, vemos tudo igual, tudo normal, não há como analisarmos nada sem sairmos do automático. É isso que precisa fazer quem quiser bem compreender qualquer coisa. Sei bem – e por isso o sentimento de solidão – da multidão de pessoas que não se preocupa com isso, e emite juízos rasteiros a partir automático, pelo que vê e pelo que pensa ver no espelho. Mas, a não ser que queiramos ser boi na boiada, precisamos fazer aquilo que nos permite ser diferentes dos demais animais: pensar.

Os fins justificam os meios. Há quem atribua a expressão a Maquiavel, embora ele nunca a tenha escrito. De minha parte, não considero tão errado dizer que está nele a primeira formulação mais elaborada de algo que acompanha o Poder desde sempre.

Nos meus anos de formação política – fins da década de 70, anos 80 –, eu me alinhava com uma visão crítica do stalinismo, e a crítica à ideia de que os fins justificam os meios tinha sempre como alvo o que aconteceu na União Soviética sob Stalin: a pretexto de construir uma sociedade solidária, eliminou os adversários políticos, matou milhões de pessoas, deixou morrer de fome outros milhões.

Em outras palavras, o mundo melhor devia ser construído sem aqueles horrores, ainda que – e isso também era objeto de ceticismo – os fins fossem nobres. Claro que a crítica não era simples. Dizia-se, por exemplo, ingênuos os que, como os eurocomunistas – antes deles os sociais-democratas o haviam feito e se adaptaram ao sistema –, defendiam jogar o jogo democrático, porque nunca o imperialismo e a burguesia aceitariam qualquer mudança que lhes tirasse o poder econômico. E tinham argumentos na História recente da América Latina, de que a derrubada de Allende era o caso mais emblemático, mas na qual havia também o nosso 1964.

A propósito de 1964, sempre é bom lembrar que o forte argumento da corrupção, que tanto mobilizou a classe média de então, nunca foi comprovado, e Jango e JK, assim como Brizola, morreram sem um centavo a mais do que já tinham antes. Mas isso é detalhe, e fujo do meu tema.

O fato é que nesses anos da minha vida fiz muitas leituras críticas ao stalinismo. Lutando na Espanha, de George Orwell, e Memórias de um revolucionário, de Victor Serge, foram essenciais. Li obras esparsas de anarquistas, li Emma Goldman, que mais ainda admirei depois de ver Reds no cinema. Na universidade, circulava um opúsculo de Cornelius Castoriadis, que devorei. Anos depois, pesquisei sobre a inimizade entre Sartre e Camus, que teve como pivô justamente as suas diferentes atitudes diante da União Soviética.

Me interessei pelo eurocomunismo e pela ideia de compromisso histórico de Berlinguer. Li Carlos Nelson Coutinho defender a democracia como valor universal. Acabei aportando em Bobbio, com sua defesa de respeito às regras do jogo.

Acho que foi uma caminhada produtiva, e concluí que, se o adversário não respeita a democracia, com mais força ainda devíamos lutar sempre por sua preservação.

Lembro bem do entusiasmo com as greves dos operários poloneses e com o Solidarnosc, contemporâneos à fundação do PT. Muitos víamos aí lampejos de democracia, partidos novos que no leste europeu e na América Latinha dariam uma conformação democrática à proposta socialista. O entusiasmo não foi muito diferente daquele que é dirigido nos tempos atuais ao Syriza, ao Podemos e seus correspondentes portugueses e irlandeses. A não realização dessas expectativas é ponto para infindáveis discussões, que também não cabem aqui.

Defender a democracia nunca deu salvo conduto a quem se dizia de esquerda. O espectro do comunismo era muito forte e servia de arma para estigmatizar como autoritário tudo o que fosse próximo de qualquer ideia socialista. Não faz muito tempo que ainda me esfregaram na cara o livro negro do comunismo.

Embora fossem evidentes as estripulias dos Estados Unidos no mundo, embora aqui vivêssemos sob uma ditadura, havia um forte espaço para assim nos acusarem. Afinal, tratava-se da defesa do Ocidente democrático, que respeitava as regras democráticas e os direitos individuais. Mesmo quando não praticado, o velho pensamento liberal servia para a defesa dos direitos individuais contra o coletivismo e a padronização do comunismo.

Este Ocidente nos dizia que os fins não justificam os meios, e a sociedade perfeita era justamente aquela que valorizava os meios, as regras democráticas, a preservação das liberdades individuais, o rechaço à tentativa do Estado de imiscuir-se na esfera privada.

O comunismo acabou, mas o discurso não acabou, e na América Latina se inventou o neologismo bolivarianos, herdeiros das antigas práticas stalinistas, inimigos da democracia e dos direitos individuais.

O interessante desse discurso é que ele nunca se reconheceu numa bipolaridade direita-esquerda. Pelo contrário, é formulado de uma posição de centro, que rechaça o comunismo à esquerda e o nazismo à direita. Embora não veja problema em se alinhar com o direitismo mais radical, como aquele do libertarianismo americano, que doutrina e financia os organizadores das manifestações de rua pelo impeachment, muitos dos seus emissores se ofendem quando ouvem qualquer comparação com o nazismo, enquanto seguem usando a pecha de comunista ou bolivariano para a esquerda.

No final de 2014, escrevi um texto em que comparava as manifestações pelo impeachment, então no nascedouro, com o Putsch de Munique; depois, já em 2015, fazendo uso da descrição de Norbert Elias, tracei um comparativo entre nossa situação e a da Alemanha na época da afirmação do nazismo, em que a ideia de salvação da democracia se inviabilizou pelo crescendo da polarização política. Em ambas as ocasiões, ouvi queixas de pessoas que, com um histórico de adaptação à democracia, se viam injuriadas com minhas comparações, e as refutaram como uma indevida acusação.

Nos últimos tempos, não tenho feito comparações entre nossa situação e a da Alemanha nazista, mas há alguns dias vi uma forte reação a um texto em que o autor ilustrava com o Judiciário dos tempos de Hitler algumas práticas hoje em uso no Brasil.

As pessoas que assim se manifestaram expressaram uma genuína repulsa ao que tomaram como uma acusação contra si próprias, e uma chegou a dizer vilipendiada a memória de antepassado que sofreu os horrores de um campo de extermínio nazista.

Confesso que não li o referido texto, e não posso opinar sobre a reação, mas considero necessário estabelecer que a rejeição à Lei de Godwin não pode permitir a interdição a nenhuma comparação histórica. Não neguemos o nazismo, assim como não negamos o comunismo, só porque não o vemos no nosso espelho. A História não se repete, mas a manifestação presente de algumas marcas dos regimes totalitários do passado deve servir de alerta, porque o totalitarismo não precisa usar o nome feio que rejeitamos para se manifestar novamente.

Orwell escreveu 1984 pouco depois da Segunda Guerra. Imagino, por sua história de homem de esquerda desiludido, que destinasse sua crítica principalmente ao comunismo, como de resto fez em outras obras, mesmo porque o regime que descreve é coletivista. Mas a distopia de Orwell se localiza no futuro e se realiza num contexto em que a ideia de controle total do indivíduo se dá pelo uso de uma tecnologia até então inexistente.

Hoje, temos tecnologia. A internet nos trouxe um formidável poder de comunicação, que pode nos dotar de instrumentos antes inexistentes de exercício da opinião e da democracia – e isso independentemente dos idiotas de Umberto Eco –, desde que seu uso não seja privatizado. Por outro lado, como nunca, é possível saber tudo da vida das pessoas, desde localizar sua casa por satélite até conhecer seus hábitos de consumo.

A ferramenta para controlar a vida de todos nós existe, está à disposição e é utilizada clandestinamente. A tradição democrático-liberal é que ainda não permitiu que esse passo invasivo fosse acolhido pelo Direito.

A interceptação telefônica é uma dessas coisas que vão além do limite da tolerância dessa tradição. Sua ainda recente aceitação em investigações criminais veio revestida de inúmeras cautelas, que vão desde cuidados prévios, como a necessidade de haver fortes indícios de crime, a imprescindibilidade da prova e tratar-se de crime de alguma gravidade. Além disso, tendo o legislador claro que a interceptação telefônica invadia brutalmente a privacidade do indivíduo, estabeleceu um total sigilo sobre seu resultado, que não pode ser quebrado sob nenhuma hipótese, exceto se dela advier prova para o processo, após ser a ele incorporada, e com limitação à escuta relevante para esse fim.

Por três anos fui juiz plantonista. Entre minhas atribuições estava autorizar a interceptação telefônica naquelas investigações cujo inquérito ainda não havia sido distribuído. Nesse tempo autorizei muitas interceptações. A maior parte delas nunca retornou para mim, porque era encaminhada ao juiz titular.

Uma coisa eu sempre soube nesses três anos, seja por minhas convicções democráticas, seja por minha formação jurídica. Nunca poderia tolerar – ser seu agente pior ainda – qualquer deslize com essa regra. Não havia outra regra genérica de interesse público que me autorizasse a jogar ao mundo o que desse modo se tornava conhecido.

Aliás, quando comparo isso ao sigilo fiscal ou bancário, acho demasiadamente singelos estes dois, que dizem só com minha esfera econômica, enquanto o sigilo telefônico diz com toda a minha intimidade.

De qualquer maneira, não tinha dúvida de que qualquer infração a esse comando seria de uma gravidade ímpar, e, se apurada, sofreria graves sanções disciplinares e provavelmente penais.

Hoje, tenho ouvido que os fins justificam os meios. Melhor seria se essas palavras viessem dos comunistas. Melhor seria se viessem dos nazistas. Não, essas palavras vêm dos democratas. Esboço um sorriso irônico, mas não devo: é trágico demais para sorrir.

Nos últimos dias, várias pessoas de bem viram uma coisa diferente ao se olharem no espelho. Elas acham que é só uma ruga. Não é.

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Uma resposta

  1. Avatar de Roberto E. Schmidlin
    Roberto E. Schmidlin

    Hoje li também “O Espelho”. Ainda mais me identifiquei consigo. Meu mal-estar com tudo o que está acontecendo não diminui por isso. Como pode haver tanta cegueira, tanta parcialidade, tanto comodismo intelectual, tanto espírito de carneirinho?

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