O circo e o bonde

Tenho um amigo honesto. Explico: ele não é honesto como me imagino ou como você provavelmente é. Não, ele é muito mais honesto; é dessas pessoas que provavelmente nunca cometeram um pecado na vida, a virtude em pessoa.

Devo dizer que essa sua admirável qualidade lhe traz algumas dificuldades. Uma delas é ver o mundo e as pessoas por essas lentes e sempre acreditar grandeza humana, o que não raro lhe causa frustrações. Obviamente, é um democrata, e, preocupado com o processo de impeachment, veio me dizer que é necessário cuidar para que seja observado o devido processo legal.

Fiquei em dúvida sobre como responder e levei algum tempo para fazê-lo. Ao fim, lhe perguntei se a justa causa era um dos requisitos do devido processo legal. Ele não entendeu bem a finalidade da pergunta, e dei um exemplo: “se – coisa que sei que não farás – atrasares o recolhimento do teu imposto de renda e fores processado criminalmente por isso, te basta que te concedam amplo direito de defesa e sejam observadas todas as regras processuais?” Como sua expressão continuou de dúvida, continuei: “se um juiz receber uma denúncia por fato que não é tipificado e ao final te condenar, de que te terá adiantado o devido processo legal?”

Digam-me depois os processualistas se a justa causa é constitutiva do devido processo legal ou se, mais voltada ao direito material, é coisa distinta, mas ao meu honesto amigo essa questão não havia ocorrido, e ele achava que um processo bem conduzido (com Cunha?) asseguraria o respeito ao Estado Democrático de Direito.

Não percebeu, na sua ingenuidade, que o circo está montado e nele o que funciona é a pantomima. É certo que os mais espertos, preocupados com a reputação, recusam o papel de palhaços e preferem atuar nos bastidores – afinal, príncipes não podem ser golpistas –, mas o espetáculo está programado para ter início meio e fim meticulosamente organizados para alegrar a plateia, tudo conforme o figurino, e a trupe não pensa em detalhe tão irrelevante como a justa causa.

Tenho outro amigo, também honesto e também democrata, mas sem a ingenuidade do primeiro. É dessas pessoas que não dão ponto sem nó nem batem prego sem estopa. Com esse senso prático, mostra impaciência com as dúvidas ingênuas daquele, e há dias vocifera contra o golpe.

Concordamos nisso: achamos que devido processo legal é detalhe e pedalada fiscal é pretexto – furado, porque não acharam outro melhor, mas suficiente para os propósitos golpistas.

Ele é uma pessoa bem relacionada e muito respeitada em seu meio pela aguda percepção da realidade. Distraidamente, comentei que, com essa sua respeitabilidade, ele tinha papel importante em convencer as pessoas acerca da iniquidade de que falávamos.

Imediatamente, sua exaltação cessou, ele deu um meio sorriso, e, com seu pragmatismo, respondeu que estava esperando o rumo que as coisas vão tomar, para poder se manifestar com maior segurança no momento oportuno, que talvez acabe não sendo necessário chegar a esse ponto, mais outras coisas do gênero. Não preciso dizer que se despediu apressadamente e foi embora.

Meu amigo pragmático acha perigoso embarcar agora no bonde que vai para a Praça Democracia e prefere aguardar na penúltima parada, quando todos os obstáculos estiverem superados; se o bonde não chegar até lá, não terá se comprometido em vão. Mas, penso eu, para ir da penúltima parada ao ponto final não precisa subir no bonde; ele que vá a pé.

Esses, meus dois amigos: um não viu o circo; o outro vai perder o bonde.

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