Nunca reverenciar

Giulio Cesare Croce foi um escritor italiano do Século XVI, e o conheci num tempo que já vai remoto, quando a vontade de ler me fazia catar qualquer coisa que então pudesse achar em Bom Princípio. Quer dizer: não conheci Croce – a ele cheguei muito tempo depois, quando tentava resgatar esta história –, conheci Bertoldo, cujas aventuras me caíram nas mãos, já não lembro como.

Bertoldo era um personagem popular medieval, ao estilo de Sancho Pança, disforme e de feio aspecto, que compensava as imperfeições do corpo com a vivacidade do espírito. Acolhido na Corte de Albuíno, foi ali, na presença do rei dos lombardos, que se desenrolaram suas peripécias.
Se dele nunca esqueci, e de algum modo o tomei como companheiro de viagem, foi porque negou reverência ao rei, e, diante do estratagema deste, de mandar reduzir a altura da porta para que, ao entrar, não conseguisse impedir o gesto, ingressou na câmara real de costas. Um homem não deve abaixar a cabeça a outro homem, foi o que disse Bertoldo ao rei.
Albuíno era generoso, e por isso a ousadia de Bertoldo não lhe custou mais que a própria admiração real. Mas não se espere na vida, mesmo passado meio milênio, que semelhante postura seja facilmente tolerada; ao contrário, ainda hoje, o pobre que tenha a presunção de apresentar-se igual diante de uma autoridade não há de escapar de uma forte admoestação.
Mas, voltando às minhas reminiscências, já por aquela época ouvia o indefectível manda quem pode, obedece quem precisa. É claro que mandar e obedecer têm natureza distinta do reverenciar, mas são as marcas de uma sociedade hierarquizada, onde vicejam as condições que permitem a quem está no topo exigir a submissão de quem lhe é subalterno.
E onde as desigualdades sociais são mais marcantes, onde a casa grande e a senzala ainda estão de tal modo marcadas, a arrogância senhorial se mantém inteira, à espera do desafio de bertoldos que não baixem a cabeça para outros homens.
Enquanto isso não acontece, atrevo-me a dar o conselho: nunca preste reverência, porque ninguém vale mais que você; também nunca exija reverência, porque ninguém vale menos que você. E asseguro: isso lhe fará bem.

A ilustração que achei foi de Bertoldo e Bertoldinho. Lembro da capa, mas não tenho certeza de que o texto esteja ali: Bertoldinho é o filho parvo de Bertoldo, retratado em outra história. A passagem a que me refiro está aqui. Também achei o livro integral em espanhol, numa edição de 1846, obra de gran diversion e suma moralidad, donde hallará el sábio mucho que admirar y el ignorante infinito que aprender.

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Uma resposta

  1. Avatar de Beatriz
    Beatriz

    Dr. Pio Giovani Dresch, existem pessoas que merecem, sim, nossa reverência. Eu conheço muitas. Pessoas que fazem diferença nesse mundo. Pessoas que transformam o mundo em algo melhor ou que trazem significado à nossa existência. Não me sinto inferior a elas. Sinto-me agradecida por existirem.

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