Era para ser bissexto, mas adquiriu uma regularidade, e na manhã cansada de sábado o editor que me habita me sacoleja na cama e me manda ao texto.
Às vezes, é só o tempo de levar ao monitor o artigo que me interpelou ao longo da semana, e ele jorra fácil, com frases previamente construídas. Nesse caso, apenas me preocupo com a ordem das ideias, com corrigir a pontuação, excluir os adjetivos e advérbios que vieram em demasia, substituir palavras repetidas, me policiar com as metáforas. Em seguida está pronto. Geralmente sai redondo.
Ultimamente, não é o que tem acontecido, porque as ideias rarefeitas, sumidas numa semana voltada a processos, tornam sofrida a construção, que só se conclui porque me submeto à exigência do obsessivo editor.
Acontece também de o sofrimento decorrer da situação oposta, e então vários temas competem entre si, cada um impedindo o outro de ganhar vida.
Foi assim esta semana. Quando soube da celeuma causada pela enquete da Fátima Bernardes, da reação raivosa por causa da opção dos convidados pela prioridade do socorro médico ao traficante em estado grave, não ao policial que não corre risco, pensei: é este o assunto.
Mas em seguida veio a notícia das gravações realizadas pelo ex-ministro, e me inclinei a tratar disso. O faria com um viés de cronista, em que discutiria quando acaba um governo. Não seria sobre o fim cronológico, nem sobre as condições políticas em que acaba, seria sobre o fim simbólico.
O governo Dilma, por exemplo, acabou por força do que os historiadores, já não contestados pelos tantos cuja culpa não permite seja isso dito, chamarão de golpe. Mas houve um episódio menos nobre, cômico e vulgar, que em dado momento me fez pensar: acabou o governo. Foi quando a mulher deslumbrada de um ministro fugaz resolveu tirar fotos sensuais no gabinete. Pensei então que um governo com o qual acontece uma coisa dessas só pode ser um governo acabado.
Pois usaria isso no texto como uma introdução ao episódio que, na minha ideia, acabou com o governo Temer. O simbolismo contido no fato de um ministro gravar e divulgar conversa que teve com o presidente é tão forte, passa uma ideia tal de traição e lutas intestinas, que só pode se fazer acompanhar da sensação de que o governo acabou. Escreveria então que não sei se é golpe no golpe, mas que fiquei com essa sensação de fim de festa.
Por outro lado, me preocupava com sair um texto blasé, e pensei em desdobrá-lo, nele incluindo um terceiro assunto. Acrescentaria então que, seja com este governo, que ainda não está morto, seja com o que poderia emergir de uma eleição parlamentar, segue firme o ideário neoliberal, de reduzir o Estado, retirar direitos, abandonar programas sociais, entregar as estatais, tudo isso demonstrado à exaustão com as atuais movimentações no Congresso.
Com esse acréscimo, talvez se aplacasse minha consciência, preocupada com a ideia de que só tenho contornado os assuntos mais importantes, sempre ouvindo de Brecht, alçado ao improvável lugar de pai censor, que silencio sobre tanta injustiça.
Aliás, tenho silenciado sobre as ocupações das escolas, não por opção, mas porque não encontrei um modo de dizer, e, tenha ou não outro assunto, os sábados insistentemente me pedem uma atenção a elas. E assim, porque os sábados passam e não escrevo, sou novamente interpelado pela ideia no sábado que segue.
Assim estava eu, tentando decidir entre assuntos, preocupado em não trair, pela leveza, a sua gravidade, quando soube da morte de Fidel.
Por que ousou fazer isso, morrer na contramão atrapalhando o sábado? Devo agora escrever sobre ele, sobre tudo o que representa, sobre os sonhos realizados e, principalmente, os não realizados?
Devo esquecer todos os assuntos em que pensei, abandonar todos os textos que quase escrevi, para me ocupar de uma morte já há tanto aguardada – e por muitos desejada?
Devo falar do Fidel que conheci ao ler a Ilha, aquele que, pouco ao sul da Flórida, há mais de 50 anos resistia ao grande império? Devo dizer da dignidade cubana, lugar onde décadas de sufocamento econômico não foram capazes de quebrar admiráveis indicadores de saúde e educação? De que modo posso escrever um texto em que ponha minha admiração pelos projetos de igualdade, defendidos com tanto afinco, com a sempre necessária crítica à falta de democracia?
Mas, se chegar a esse ponto, não será motivo para um outro texto, que trate da trágica incapacidade histórica de realizar a igualdade com democracia? E, se o fizer, qual será o tratamento a dar à figura do comandante?
Definitivamente, vou desistir. Não é um bom sábado para escrever. Fica para o próximo.
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