Mísseis civilizatórios

Foi fulminante a resposta contra o bárbaro ataque de armas químicas, que matou mais de oitenta pessoas, incluindo crianças e idosos. Mais uma vez os Estados Unidos defenderam a civilização, ao lançar mísseis sobre uma base aérea do governo sírio.

Desculpem, mas não vou nesse bonde. Sim, ataques químicos são revoltantes e, se – vejam bem: digo se – perpetrados pelo governo Assad, só contribuem para mostrar sua face cruel. Mas não me venham dizer que os 59 mísseis Tomahawk, que custaram 60 milhões de dólares e fizeram imediatamente subir as ações da fabricante na bolsa, foram despejados por amor à humanidade.

Uma semana antes, com muito menos repercussão nos jornais e nenhum clamor popular, a coalizão liderada pelos Estados Unidos bombardeou a cidade de Mossul, no Iraque, deixando cerca de duzentos mortos, entre eles também crianças e idosos.

Não vi, entre os que agora elogiaram Trump – e por justiça devo dizer que muitos o fizeram pela primeira vez e a contragosto – qualquer gesto de censura. Até compreendo isso: com tanta frequência os ataques inteligentes dos americanos erram de alvo, que já se tornou corriqueiro matarem por engano algumas dezenas ou até centenas de civis. E do corriqueiro não se fala, nem nos incomoda.

Também não nos costumam mostrar os escombros de cidades onde antes viviam milhares ou até milhões de pessoas, muitas das quais agora estão retidas em acampamentos nas fronteiras da Europa. Se mostrarem, não dirão de quem foram as bombas, e nossa reação será apenas de tristeza e lamento pela existência de semelhantes guerras, reduzidas a pouco mais que fenômenos naturais ou prova do potencial destruidor da humanidade.

Continuamos a não chamar criminosos Bush, os Estados Unidos e as grandes corporações a quem interessava botar a mão no petróleo do Iraque e, de quebra, lucrar com mais uma guerra. Não os chamamos criminosos por terem acendido o estopim no Oriente Médio com uma acusação falsa sobre a existência de armas nucleares. Nem ao menos nos preocupa saber que a Guerra Civil da Síria também começou sob o patrocínio desses mesmos Estados Unidos, sempre com seu nobre discurso civilizador.

Também não tomamos conhecimento de centenas de imagens de crianças em sofrimento em diferentes partes do mundo. Geralmente elas não nos comovem, ou nos comovem somente até a próxima mensagem das redes sociais.

Mas, quando a notícia é cuidadosamente trabalhada, quando sumariamente nos apontam o autor do ataque, quando o tom de voz do locutor é daquele tipo que gera indignação e quando, em seguida, nos é anunciado que esse ato desprezível recebeu uma resposta à altura, nossa alma se sente lavada.

Não foi por nada que os analistas coincidiram em dizer que Trump deu um golpe de mestre, coisa que muitos de nós considerávamos não estar a seu alcance. Mas, vejam bem: golpe de mestre não é bem a definição que se daria a quem apenas quer revidar uma agressão à humanidade. Não, golpe de mestre é outra coisa, coisa de quem estuda bem o lance a ser dado.

Então, desculpem-me os ingênuos, quero dizer que as imagens também me chocaram, mas em seu bonde não subo.

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