Ele era uma pessoa justa.
Religioso, conservador, austero, trabalhou muito por muitos anos. Profissão, alfaiate. Mas a profissão era insuficiente para sobreviver, e ele também vendia sapatos, de preferência com defeito, para ficar mais barato aos seus fregueses agricultores. Vender sapatos também era insuficiente, e às cinco horas ele fechava as portas para ir à roça. Assim criou onze filhos.
Sempre votou na ARENA, defendia a Ditadura e acreditava que ela tinha vindo para acabar com a corrupção e o comunismo. O dia em que descobri em Weber as diferentes concepções sobre a finalidade do trabalho para católicos e protestantes, entendi melhor a ideologia por trás desse empenho em trabalhar a vida inteira, sem qualquer expectativa ou vocação para enriquecer, apenas para dignificar a vida.
Isso deu sentido também ao fato de que, mesmo sendo tão conservador, ele visse com desconfiança os ricos, ao ponto de ser cético em relação à sua honestidade.
Apenas aos 60 anos realizou seu sonho de consumo, um fusquinha comprado por consórcio, que manteve enquanto conseguiu dirigir.
Esse, meu pai. Se vivo, completaria cem anos no início de abril.
Mas o que tem a ver meu pai com Piketty? Nada, exceto por uma lembrança de algum momento indefinido entre o fim da minha infância e o início da adolescência. Na época, descobri que o imposto de renda era progressivo e comentei com ele que achava isso injusto; afinal, se houvesse uma única alíquota todos pagariam imposto na mesma proporção em relação a seus rendimentos. Sua resposta foi a de que, por ganharem muito mais e viverem muito melhor que os pobres, a contribuição dos ricos devia ser proporcionalmente maior.
Talvez sua visão de mundo fosse pré-capitalista, provavelmente semelhante à dos camponeses católicos do sudoeste da Alemanha no século XIX, mas o valor aí contido, com um certo elogio ingênuo a uma vida frugal, era o de que não se justificava moralmente a existência de grandes riquezas, enquanto ainda existia no mundo tanta pobreza.
Piketty faz a mesma crítica, mas vai além, e vê na crescente desigualdade um potencial fator de desagregação social, fonte de conflitos e riscos para a democracia. Mais que isso, ao analisar os dois últimos séculos do capitalismo, aponta a tendência a uma crescente concentração de renda e capital, apenas interrompida em momentos de forte crise, coincidentes com guerras mundiais, por força da maior taxação dirigida aos ricos.
Se o economista francês faz essa crítica ao capitalismo com base na análise das maiores economias do planeta, mas sem analisar o Brasil, por não dispor de dados para tanto, é sabido, seja com base nas análises de concentração de renda pelo Índice Gini (que Piketty considera pouco válido), seja por estudos mais recentes de economistas brasileiros, que em nosso país a disparidade de renda e patrimônio é muito maior que na maior parte das nações.
E, ao contrário do que acontece nos grandes países por ele analisados, a estrutura de arrecadação tributária do Brasil se assenta fundamentalmente em impostos sobre o consumo (IPI e ICMS), que são na prática regressivos, porque, embora as alíquotas sejam as mesmas para todos os consumidores, os pobres comprometem a quase totalidade de sua renda no consumo, enquanto os ricos destinam a ele somente uma parte limitada do que ganham.
Esse plus que os ricos guardam ou reinvestem, e que permite uma multiplicação da fortuna, é pouco taxado, e menos taxado no Brasil que em qualquer um dos grandes países do mundo.
Exemplo disso é o imposto sobre doações e heranças, que no Brasil é de 4% na maior parte dos Estados, não ultrapassando nunca 8%, enquanto nos Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e França tem alíquotas máximas que oscilam entre 30% e 45%.
Piketty propõe o imposto sobre fortunas, para evitar a cada vez maior concentração de renda naqueles países; imagine-se então o Brasil, que não chegou ao menos perto da estrutura tributária dos países desenvolvidos.
Veja-se o imposto de renda – um dos três impostos por ele propostos como antídoto à concentração, junto com o imposto sobre doações e heranças e o imposto sobre fortunas: sua evolução no Brasil se deu justamente de modo a onerar os mais pobres. Em 1970, período mais duro da ditadura, a isenção alcançava, do mesmo modo como agora, valor equivalente a uma renda anual próxima de 30 salários mínimos, mas naquele ano havia doze faixas, a maior das quais com alíquota de 50% (nos anos 80 chegou a 60%), enquanto hoje a maior é de 27,5%; em 1970, a faixa de 25% atingia quem ganhava algo em torno de 145 salários mínimos por ano e a partir de pouco mais de 550 salários mínimos ao ano a alíquota era de 50%; hoje, a faixa máxima, de 27,5%, atinge quem ganha 75 salários mínimos ao ano.
Disso se vê que mais ou menos à época em que meu pai me dizia que os ricos tinham de pagar mais, as alíquotas eram menores para a classe média e maiores para os mais ricos. Superado o período de ditadura, após trinta anos de democracia e doze anos de governo de PT, cujos programas de distribuição de renda são inegáveis, o imposto de renda pouco tem servido para ajudar a frear a concentração de renda, mais se destinando a fazer caixa, a partir da defasagem entre a correção das alíquotas e da inflação.
Fica então a pergunta: se há no Brasil um governo de esquerda, o que falta para que tome a iniciativa de mudar a injusta estrutura de impostos? Por que não reduzir o peso dos impostos sobre consumo, estender as isenções na base do imposto de renda, elevar as alíquotas nas faixas dos muito ricos e aumentar os impostos sobre doações e heranças? Se fizer isso, não poderá ser acusado de comunizante, porque apenas fará o que há muito fazem os países mais ricos, base do capitalismo mundial.
Se, mais que isso, implantar o imposto sobre fortunas, será um acréscimo inovador, mas é fundamental que a estrutura tributária deixe de penalizar os pobres. E isso não pode ficar para amanhã.
Meu pai acharia justo e quem leu Piketty sabe que, mais que justo, é necessário.
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