Meu caro amigo
Não podes imaginar a satisfação com que recebi tua mensagem. Já se foi, perdida, a nossa mocidade e faz tempo que apenas ouvia alguém dizer, de vez em quando, que fulano está bem. Saudades da parceria, que os anos, e não só os anos, não trazem mais.
Se emociona receber notícias tuas, o motivo da mensagem também me permite aliviar um pouco os tantos nós presos na garganta. Deves ter percebido que o diálogo anda difícil, e o que fazes é justamente convidar ao diálogo.
Confesso que, ao ler tua pergunta – “como tanta gente defende o chefe de uma quadrilha?” –, pensei que fazias apenas uma daquelas tuas perguntas retóricas, carregadas de ironia, feitas para irritar. Claro que, como entre nós as ironias sempre transitaram livres, não me irritaria e pensaria numa resposta à altura da provocação, para ao final rirmos juntos.
Mas logo vi que a pergunta era sincera, porque estás na aflitiva situação de veres tuas filhas discutirem contigo em defesa do chefe da quadrilha. Concluí, então, que estás mesmo empenhado em entender o que passa pela cabeça de tanta gente, precisas disso para ter certeza de que não tiveram sua mente abduzida nem se converteram a uma seita messiânica que cultua a corrupção.
Pois, antes de tudo, quero te cumprimentar pelas filhas, que só vi pequenas, até o nome esqueci. Sim, embora eu mesmo não as reconheça mais, posso te assegurar que, como esses milhares que defendem o chefe da quadrilha, são boas, de coração generoso e solidário, e lutam por um mundo melhor.
Mas, até aqui, nada esclareço, porque tua pergunta traz isso como pressuposto. Não disseste claramente, mas entendi que tua perplexidade está justamente no fato de que identificas pessoas inteligentes e generosas defendendo um criminoso.
Então, tentarei te dizer algumas coisas mais. Provavelmente, tivemos semelhantes conversas em outros tempos, mas – sabe como é – a luta pela sobrevivência nos faz esquecer muita coisa, que fica abandonada em uma gaveta empoeirada da memória.
Se não te importas, vou falar um pouco da esquerda. Sim, porque, se milhões de pessoas talvez estejam defendendo o criminoso porque ele as tirou da pobreza, muitas há que o defendem a partir de uma ideia. Uma ideia de esquerda.
Começo com uma provocação. Pessoas de esquerda são inteligentes. Há alguns anos, até circulou pesquisa de uma universidade, acho que do Canadá, dizendo que pessoas de esquerda são mais inteligentes que as de direita. Acho que faz sentido isso, mas não vou me perder fazendo comparações: apenas digo que são inteligentes (e aí mais um elogio para tuas filhas), porque habituadas a pensamentos complexos, que superam as ideias binárias, rasteiras, do tipo se não A, então B.
Isso significa também que não se contentam com o Jornal Nacional ou a Veja, mas que buscam entender as coisas mais a fundo.
Tiro um exemplo de fato acontecido esta semana: tenho certeza de que tuas filhas duvidarão da tua capacidade mental se disseres que os Estados Unidos estão fazendo aquilo na Síria por caridade. Aliás, lembro agora do Moraes (lembras?), aquele colega que nem com cola passava de aula. Quando invadiram o Iraque, ele me disse assim: “não dou um ano para os iraquianos agradecerem aos Estados Unidos”. E você viu o que fizeram lá.
Uma hora a desculpa é armamento nuclear, outra hora são incursões humanitárias, e os burrinhos acreditam sempre. Nem ao menos imaginam que tenha a ver com o petróleo e com o controle do mundo.
Daí, que vou ao cabeleireiro e ouço elogiarem o Trump: “esse, sim, é macho; agora aqueles russos vão ver o que é bom”. E a inteligentíssima pessoa conclui seu profundo raciocínio dizendo que a Rússia é bem longe da Síria, e não devia se meter lá. Coitada, nunca olhou um mapa para descobrir como os Estados Unidos ficam vinte vezes mais longe.
Está longo meu exemplo, e talvez penses que me afasto do tema, mas até não é tão despropositado falar dos Estados Unidos, pelo que têm a ver conosco. Você sempre foi uma pessoa informada, e deve ter ouvido as divulgações do WikiLeaks sobre a espionagem que eles fizeram no mundo (nem a Merkel escapou). Deve ter ouvido também declarações de alto funcionário do FBI sobre sua colaboração com a Operação Lava Jato. E certamente sabe dos cursos feitos por juízes brasileiros nos Estados Unidos. Aí você pensa no pré-sal sendo entregue às grandes petrolíferas, pensa nas empresas brasileiras que se encolheram no mundo e em como o Brasil já não articula os países pobres numa política internacional multilateral.
Agora, te pergunto: nem ao menos te ocorre pegar uma agulha e tentar costurar essas coisas todas? Ainda te conheço bem, e sei o que vais dizer: pura paranoia. Pois te afirmo que essa não é a melhor resposta para tuas filhas. Elas questionam, e talvez às vezes exagerem nas teorias conspiratórias, mas isso é próprio de quem não acredita em papai noel: quem desconfia, pode até passar do ponto, mas não cairá no conto do vigário.
Mas pensa duas vezes antes de rir, quando elas disserem que Iraque, Síria, Venezuela e Brasil tem em comum o petróleo. E não cometas a bobagem de lhes responder que elas defendem o Maduro, aquele ditador. Dizer isso é mais ou menos como dizer que defendem um chefe de quadrilha e, se disseres, é porque não entendeste nada.
E não me venhas com essa história de que Síria e Iraque são bem longe, e que nada disso acontece aqui. Ou essa da ditadura venezuelana. Aliás, fico até imaginando aquele teu sorriso irônico, enquanto pronuncias, à meia voz, a palavra bolivarianos.
Mas elas vão te responder com Allende, com 64. E, se pensares que isso não tem nada a ver, porque já não existe golpe militar, convém te informares sobre como ocorrem hoje as rupturas institucionais.
Não vou nem te lembrar do twittaço do comandante do Exército nas vésperas do julgamento do Supremo, vou fazer de conta que os militares estão respeitando a democracia, mas, te pergunto: acompanhaste o impeachment no Paraguai ou a deposição do presidente de Honduras? Precisou de militares? Aliás, em Honduras foi o máximo: a Suprema Corte destituiu o presidente de esquerda porque ele queria mudar a Constituição para se reeleger (isso que o FHC fez aqui, com compra de votos nunca investigada, lembra?). Pois bem, o que fez o sucessor de direita? Mudou a Constituição para se reeleger e venceu a eleição. Faz pouco, e deves lembrar que ele estava bem atrás na contagem dos votos, mas aí aconteceu uma pane nos computadores e tudo se resolveu.
Nesse ponto, vais insistir, e dizer que eu não devo comparar o Brasil com o Paraguai e a Bolívia. Pois te confesso, quando aconteceu aquilo com o Lugo fiquei triste, mas pensei, com um sorriso: assim é a democracia paraguaia…
Claro que eu não acreditava que uma coisa dessas pudesse acontecer com a sólida democracia brasileira. Não até os patos começarem a ir à rua, com cobertura da Globo. Eu sei, você não fez isso, também não vestiu a camiseta da seleção, que conheço teu senso de ridículo, mas o Celsinho me disse que te encontrou aí no Rio depois daquela ridícula comédia na Câmara dos Deputados, e tu disseste a ele: “tinha que tirar, porque a Dilma não tinha mais condições, mas que fiasco fizeram”. Pois parece que a tua crítica era só de natureza estética.
Esse é o problema com tuas filhas. Com todo o respeito que te tenho por aqueles anos de amizade, posso te dizer que os patos não teriam vencido se gente como tu não os tivesse apoiado, ainda que o tenhas feito com essa discrição e elegância que exibes em público.
E aonde botaste tua formação jurídica naquele momento? Tu também foste dos que disseram que impeachment pode porque está na Constituição? E te ofendes, como tanta gente que conheço, quando dizem que foi golpe? Não, meu amigo, não precisavas ter isso no teu currículo. E não me venhas com aquela tirada antiga, dizendo que não foi bem um gooooolpe, com aquele “o” que não termina, mas só um golpinho.
Bem, já deves ter percebido aonde quero chegar com a volta que dei. Sim, é bem isso: houve uma armação. E a armação não terminou quando tiraram a Dilma, o serviço precisa ser completo.
Aliás, lembras do que diziam os jornais quando começou a Lava Jato? Várias vezes isso foi dito: que a investigação foi organizada para chegar nele, este que dizes ser o chefe da quadrilha. Tua experiência como advogado de defesa não te levou a desconfiar de que havia algo estranho numa investigação que começa com a intenção de chegar a uma pessoa certa?
E quando um desembargador diz que num processo excepcional são permitidas medidas excepcionais, como respondes? E a tentativa de botar fogo no país, com a divulgação das gravações telefônicas no Jornal Nacional? Já pensaste o que isso teria ocorrido a um juiz americano que divulgasse gravação telefônica do presidente dos Estados Unidos?
Mas pensaste há pouco que não estamos no Paraguai. Para veres como é…
Quero te dizer que não li o processo, nem poderia falar sobre ele, mas ouvi falar que, onde não havia fatos, foram usadas teorias e expressões estranhas, “como ato de ofício indeterminado”.
Daí chegamos a tuas filhas. Se elas defendem o chefe da quadrilha e tu as contestas, vocês falam línguas diferentes. Nunca se entenderão. Tu falas de um corrupto, elas falam de uma perseguição seletiva.
Claro, já sei tua resposta: seletiva ou não, ele é corrupto e por algum lugar tinha que começar. Sim, isso me lembra a fala dos patos: primeiro a Dilma, depois os outros.
Só falta você falar que ele liderou a maior quadrilha que já teve no Brasil. Lembra que o genro de FHC foi diretor da Petrobrás? Lembra do que o Paulo Francis dizia naquela época? Quando foi isso?
Pois é, mas estás aí a pensar que corruptos precisam ser presos e prender um é melhor que não prender nenhum. É por isso que censuras tuas filhas e não entendes como elas defendem um corrupto. Sinceramente, ainda que compreenda teu desconforto, não consigo imaginar que nem ao menos desconfias de que há algo errado no teu raciocínio.
Vês podre a árvore, mas te negas a olhar a floresta, dizes que isso não vem ao caso. Pois tuas filhas veem a floresta, é a diferença entre vocês. E não é só uma questão de enxergar melhor, é também de questionar por que as coisas acontecem só para um lado. Lembra do que diz o Zaffaroni sobre a finalidade do Direito Penal?
Ah, e tem uma coisa essencial, que eu já ia esquecendo: a corrupção intrínseca ao sistema. Na tua mensagem, dizes que o PT se corrompeu ao chegar ao poder. Se eu puder responder com ressalvas, vou dizer que concordo contigo, mas só com as ressalvas.
Te digo isso: o sistema é corrupto. Foi feito para ser corrupto. E não é só aqui: o mais corrupto de todos é o americano, que elege deputados, senadores e presidente com contribuições milionárias das grandes empresas. E, veja só, lá todo o sistema de poder está organizado a dar cobertura para as incursões internacionais das grandes corporações americanas.
Se um dia tiveres tempo, tenta achar trabalhos escritos sobre uma coisa bem interessante: a falta de correlação entre o resultado das pesquisas de opinião e a produção legislativa. Nos Estados Unidos, como aqui, há largo apoio popular às políticas de proteção da saúde, previdência, emprego, mas tanto lá como aqui elas estão sendo varridas da legislação. A democracia não existe para atender o eleitor, mas o financiador de campanha.
E isso é fácil de entender, basta ver quem financia a campanha e quem se elege com essas campanhas. Lembras quando FHC disse que falta assepsia na relação com o Congresso? Você já pensou o que ele quis dizer?
Pois é, aqui esse tal presidencialismo de coalizão impõe ao mais honesto dos presidentes negociar com o Congresso em condições que exigem barganhas. Pensa a Madre Teresa de Calcutá eleita presidente, chegando ao poder tendo consigo uma bancada de apenas 80 deputados. Ela precisará de maioria para governar, mas para isso terá de pagar um preço. Uns cobram mais, outros menos, mas cobram e o preço precisa ser pago: aqui uma concessão de rádio, ali um ministério, lá uma mesada mensal, e por aí vai.
O tal mensalão foi isso, o preço para governar. Poderia ter sido diferente? Não sei. Sinceramente, acho que teria sido difícil mudar isso e governar com uma reduzida bancada parlamentar. Mas também acho que o PT se conformou com o jogo e passou a jogá-lo. E, não tenho dúvida, dentro dele houve gente que gostou e até se aproveitou.
Mas não vi na tua mensagem nenhuma referência a isso, não vi a menor inconformidade com o fato de que aqueles que falaram em fazer um grande acordo nacional agora estão dando as tintas. Aliás, tem tanta coisa que não vi. Tipo: a instrumentalização que a Globo faz da política e da corrupção, tendo o rabo preso com a FIFA e a CBF (ah, aquelas camisetas amarelas…).
O fato, meu amigo, é que as pessoas se indignaram com a corrupção de alguns. Não se dispõem a bater panelas pelos outros, mesmo quando ostentem mais zeros à direita. E esses outros, de um modo ou de outro, se safarão. Ainda que mais dois ou três sejam condenados, nada disso alterará o esquema.
Mas chegar a essa conclusão exige ultrapassar o pensamento indigente do rebanho. Exige também ultrapassar o teu pensamento acomodado. Ser crítico causa sofrimento, é mais fácil pensar que o sistema funciona e é justo. Por isso, corrupto é só quem melhora a vida dos pobres. Como a classe média tem medo dos pobres que podem tirar seu lugar!
Tuas filhas sabem disso, e é o motivo para defenderem o líder da quadrilha. Tu sabes que elas não são a favor da corrupção, muito pelo contrário, mas dizes que elas são ingênuas. Pensas que são enganadas porque não admites que és tu próprio que deliberadamente te enganas.
Bem, vejo que já está longa a resposta e devo parar por aqui, senão paras de me ler, se é que já não paraste.
O fato é que deves largar dessas justificativas ralas e passar a ouvir as filhas. Te fará bem.
E, se um dia vieres a Porto Alegre, avisa, para tomarmos um café.
Um beijo na família, na Cecília e nas crianças (ainda as vejo assim).
Um abraço!
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