Circulou nas redes sociais o desabafo feito por um professor e doutrinador conhecido por suas posições garantistas, após terem feito uma limpa em sua casa. Junto com o desabafo, vem um comentário sugerindo calma ao professor e discorrendo sobre a inexistência de crime no caso.
Confesso que achei engraçado o comentário, que brinca com as posições do professor, embora se trate inegavelmente de humor negro. Talvez, como chiste, valesse o compartilhamento.
O problema é que não sei se o propósito mas certamente o resultado do compartilhamento foi muito além da intenção de fazer humor, e logo gerou comentários do tipo “só vale para os outros”, “nessa hora, a teoria cai por terra” e por aí segue. De regra, não se pode esperar outra coisa na internet, mas, partindo os chamados à coerência em grande medida de operadores jurídicos, a coisa fica mais séria, e talvez seja conveniente traçar algumas considerações.
Antes de tudo, é necessário desfazer uma falácia que desde logo desqualifica a cobrança de coerência: não vi, na mensagem criticada, nada que indique qualquer proposta punitiva que se choque com as posições garantistas defendidas pelo autor. Só por isso a patrulha já fica sem chão: não se pode confundir o desabafo de alguém que teve seus bens furtados com a suposta existência de desejo punitivo.
Ademais, tanto quanto sei, o garantismo penal não se confunde com abolicionismo penal, de modo que, mesmo que formulado pedido de punição, isso não teria significado nenhuma contradição real entre teoria e prática.
Mas, superemos esse ponto, e vamos ao que considero essencial. Para isso, sem muito medo de errar, parto do princípio de que as cobranças contra o professor foram feitas por pessoas que discordam de sua teoria e viram no fato uma oportunidade para atacá-la. Isso não foi dito de modo claro, mas era perceptível nas entrelinhas de muitos comentários.
Então, desde logo é possível identificar uma falácia argumentativa das mais comuns, a falácia ad hominem, que consiste em desqualificar uma tese a partir da crítica pessoal a quem a formula. Em outras palavras, a teoria é insustentável porque quem a defende agiu de modo estranho a ela.
Mais que isso, os patrulhadores ignoraram solenemente as circunstâncias em que foi proferido o desabafo, exigindo uma coerência muito difícil de ser mantida em determinadas situações. A propósito, é bom lembrar que a civilização existe somente porque a humanidade foi capaz de construir uma cultura fundada em regras que a protegem contra os indivíduos.
E a defesa de regras garantidoras nada mais é que a defesa das regras da civilização justamente contra os impulsos individuais, mesmo aqueles de quem defende as regras.
A propósito, lembro de uma história que me foi contada há alguns anos por uma colega, também professora, acerca de uma discussão sobre pena de morte em sala de aula. Quando um aluno, utilizando-se de argumento ad terrorem, lhe perguntou o que faria se se encontrasse frente a frente com uma pessoa que tivesse estuprado sua filha, ela respondeu que a mataria. O aluno já exibia seu sorriso triunfante, quando ela acrescentou que justamente por isso existia o Direito Penal.
O certo é que quem defende o garantismo não está livre de em sua vida agir de modo contrário a suas convicções. Mas o contrário não é verdadeiro: os adeptos do punitivismo não precisam temer que isso aconteça com eles, porque eles respiram punição ao natural e sempre.
Então, senhores patrulhadores: menos.
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