Doutor Fausto, que vagou pela Alemanha do final da Idade Média, foi dessas pessoas inconformadas, que já não se contentavam com as verdades absolutas de um mundo dominado por crendices, e tinha uma sede infinita de conhecimento.
Isso era muito perigoso, num tempo em que quem pensasse por conta própria podia ser visto como herege e acabar na fogueira. Com Fausto foi um pouco diferente, porque nunca foi importunado, mas depois de morto passou a circular a história de que havia entregue a alma a Mefisto em troca de conhecimento e riqueza.
Penso nele quando vejo a problemática relação que a esquerda sempre teve com o poder. Nem falo do desvio stalinista; refiro-me mesmo à tradição social-democrata, que está na origem da cisão entre comunistas e reformistas, de aceitar o jogo eleitoral burguês, seja como meio para a obtenção de avanços para os trabalhadores, seja mesmo como projeto de uma transição pacífica ao socialismo.
O cisma tem cem anos, e nesse tempo não surgiu solução prática ao problema; onde se tentou uma transição pacífica ao socialismo – quem não lembra Allende? – o fim foi sempre trágico.
Mas nem disso quero falar. Penso mesmo é na maldição que acompanhou essa caminhada, em que nunca houve solução entre a opção por manter a pureza como força minoritária, geralmente minúscula, ou a de fazer concessões na busca pelo poder (que não é bem o poder, mas apenas o governo).
O pacto com Mefisto é prévio, e começa com a realização de alianças eleitorais, em que se prometem fatias do governo a outras forças, e com concessões programáticas, feitas para tranquilizar os empresários. Vencida a eleição, o partido incha com os novos convertidos, muitas vezes com a mesma rapidez com que descarta antigos quadros, porque incapazes de se adaptarem aos novos tempos.
Até esse ponto, embora a mudança de quadros indique um risco bem maior que a mera moderação programática, se está ainda no plano da adaptação a uma realidade concreta, que impõe sacrificar propostas estratégicas em nome de reformas que melhorem as condições de vida da população: redução da desigualdade de renda, aumento real do salário mínimo, investimentos em saúde, educação, moradia, políticas de inclusão social, tudo isso com um programa econômico voltado ao investimento.
Mas há uma outra questão, que em muito ultrapassa as concessões (renúncias) programáticas, e ela se dá no dia a dia do poder, em que a negociação com Mefisto é permanente: é na apropriação do público pelo privado, prática que é da essência do sistema. Isso passa pelos compromissos assumidos por ocasião do financiamento privado de campanha, depois pela mediação de projetos bilionários, pela administração dos balcões de negócios.
O poder é o lugar da corrupção; ela é sistemática e não será nunca erradicada. Pode ser limitada, se houver um bom sistema de investigação e punição, se houver transparência, se existirem regras que a inibam. Um governo preocupado em contê-la pode levar a sua redução, mas pode um governo que só consegue se sustentar pela formação de maiorias negociadas com base no toma lá dá cá se livrar da corrupção, quando ela se instala em suas entranhas? E em que medida o partido do governo consegue resistir à metástase da corrupção? Em que medida deseja ainda resistir a ela?
Na lenda medieval, Mefisto fica com a alma de um Fausto condenado à danação. Ao escrever sua própria versão da história, Goethe, imbuído do espírito romântico de sua época, permite a Fausto a salvação, pelo reconhecimento da sua condição humana, em que, coexistindo o bem e o mal, não deixou o herói de buscar sua própria redenção.
Resta saber se a esquerda faustiana pode ainda postular o mesmo fim redentor.
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