Indo pela Mostardeiro e atravessando a Goethe na tarde de domingo, vi em frente ao Habib’s não mais que uma dúzia de aficionados do golpe militar, pedindo buzinadas de apoio. A pantomima com fantasias verde-amarelas tinha a densidade de uma manifestação pela restauração do império, e pensei no ridículo da cena, ainda maior por contrastar com as multidões que tempos atrás povoavam o santuário porto-alegrense do golpe.
Isso foi há uma semana. Logo, como no transbordar de um copo, o interior profundo começou a se manifestar. Caminhoneiros não habitam as grandes cidades, não ressoam em suas praças, não se fazem ouvir. Não até pararem. Quando param – e conseguem fazê-lo como ninguém, até porque, como ninguém, têm o apoio dos empresários –, tudo muda. Muda porque param todos, muda porque, ao pararem, afetam a vida de todos.
E agora souberam, antes e melhor que qualquer um, dar voz à angústia de uma nação inteira, seja dos que, de um lado, viram sua presidente ser apeada, seja daqueles que, de outro, ajudaram a apeá-la e agora se veem traídos. Em ambos os lados, a desesperança, a exaustão, o emudecimento. E a greve dos caminhoneiros veio como o grito antes preso, deu voz aos desesperançados.
Ao menos no início, até que mais e mais venha a estafa, até que a Globo comece a atacar e o sacrifício comece a cansar e, com isso, a vazar o apoio, os caminhoneiros souberam confrontar o Governo e mostrar o rei nu. Ao fazê-lo, nos representaram a todos.
Mas, quando não empregados apoiados por seus patrões, são de uma classe de proprietários. Proprietários de um só caminhão, mas proprietários. E proprietários que habitam o interior profundo, onde impera o conservadorismo reacionário da aristocracia rural.
Por isso, ao fazerem uma greve que contempla e dá voz ao sentimento geral, o fazem de modo tão peculiar, logo verbalizando, seja por mote próprio, seja por acolhimento, o discurso, que o tempo e a alma tornam tão deglutível, da intervenção militar.
Mas este é só um lado, aquele da condição de classe dos grevistas.
Há um outro interior, tão ou mais profundo quanto o geográfico: é o da alma, de quem, já desesperado, busca uma solução mágica para suas aflições, porque, não mais se impressionando com ilusionistas, não enxerga outros caminhos ou se sente impotente para procurá-los, e busca nova ilusão.
Não vê alternativas, e, embora esteja ele próprio a fazer história, busca um pai que assuma o comando. Um pai severo e incorruptível, acima da venalidade da política e dos arrivistas que tomaram o poder. É assim que vê os militares, e, mesmo parando o Brasil, quer, como filho dócil, submeter-se ao seu comando disciplinador e assim ver de novo feliz a família.
Não imagina quem mais possa adotá-lo, pais andam raros. Havia um de outro tipo, com quem talvez encontrasse mais afeto que severidade. Não sei se, em sua orfandade revoltada, semelhante pai lhe interessasse, mas este não está mesmo posto, porque foi encarcerado.
E então, o que a mim era ridículo aparece para ele com alternativa real, a alternativa que brota incontrolável do interior profundo. Sua identidade social lhe permite ver isso como possível e até mesmo desejável. Talvez não passe de uma embriaguez, das que se curam pelo arrependimento matinal, mas o preocupante é que estejam dadas as condições para que semelhantes ideias obtenham tanto acolhimento.
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