Ingenuidade

Se ontem me confessei conservador, hoje confesso que sempre fui ingênuo. Sou desses que acreditam (ou, já que o tempo deve servir para alguma coisa, talvez deva usar o verbo no pretérito) em promessas e em ajustes. Às vezes quebro(ei) a cara, por ter feito negócio baseado só no acerto verbal e já quebrei muito a cara por acreditar nas promessas da política.


Hoje, uma criança riria de mim, porque tive a plena convicção, depois da Constituição de 1988, de que nunca mais haveria tortura no Brasil, do mesmo modo como me convenci, depois da cassação do Collor, de que alcançáramos um tal estágio de amadurecimento institucional que havia tornado impossível a corrupção.

Um pouco porque tortura e corrupção existem em qualquer lugar do mundo e nunca serão totalmente erradicadas, mas principalmente porque nós, brasileiros, com essa cordialidade buarquiana e esse jeitinho mattiano, sempre nos reinventamos nas pequenas e grandes falcatruas, isso nunca aconteceu.

Não temos a capacidade argentina pelo espalhafato, que consegue às vezes produzir rompimentos radicais com o passado, e persistimos na façanha de, no 31 de março, vermos com naturalidade os militares festejarem a Gloriosa. Por outro lado, não sei se os argentinos conseguiram melhores resultados que nós para a tortura e a corrupção, porque aí o buraco é mais embaixo.

O certo é que essa leniência brasileira, de fazer de conta que se enfrentam velhos vícios, quando na verdade só se dá uma pinceladinha para garantir o seu próprio lado (e o seu lado não raro é o lado de muitos, que combinam, de modo tácito ou não tanto: não mexe no meu que não mexo no teu), parece trazer sempre os mesmos problemas, num moto perpétuo que nos leva a descrer em nossa nação e em nosso povo.

Faço um parêntese: acredito que é nesse ponto que se situa a grande razão do desencanto de tantos com o PT, que trazia em seu ideário inicial a promessa de avanços sociais e, principalmente, de um modo diferente de fazer política. O PT não foi pior que os outros, o problema é que ele não tinha o direito de sequer fazer parecido com os outros. E fez.

Agora, voltando ao tema: penso que estamos novamente diante da oportunidade de confrontar a corrupção de um modo mais eficaz, diante de um escândalo de grandes proporções, que envolve algumas figuras proeminentes da política.

Isso pode resultar em avanços significativos na construção de uma sistemática de controle e investigação. Aliás, acredito que de algum modo isso vem acontecendo, e, por mais que se façam críticas à condução do processo da Lava Jato, as investigações acerca da corrupção na Petrobrás parecem indicar que se conseguiu constituir um aparato repressivo-investigativo-punitivo antes inexistente. Talvez nesse ponto minhas expectativas otimistas tenham sido de algum modo contempladas.

Mas, como cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça, vejo as movimentações políticas subjacentes às investigações e penso perceber, na ação de tantos, a preocupação primeira em fazer valer a Lei de Gérson: a ideia não é a de, num pacto civilizatório, chegarmos a um patamar de organização estatal e cultura política que torne mais difícil a corrupção e mais fácil seu combate; a ideia, vista por todos os lados, é a de, sempre por meio de um discurso moralista, de uma indignação cínica, justificar o próprio lado e demonizar o lado oposto.

E nem falo da postura patética de Eduardo Cunha, que de algum modo já foi desmascarado; falo dos caciques impolutos, que bem poderiam, ao invés de obsessivamente buscarem sua absolvição política e a condenação política do adversário, integrar-se em uma campanha comum, na qual deixassem um pouco de lado as rivalidades eleitorais e biográficas, para, no campo da política, sem pensarem na próxima eleição, construírem condições de fortalecimento de uma institucionalidade que permita um combate sério à corrupção, a ser incorporada em nossa cultura.

Mas isso talvez não passe de um resquício dessa ingenuidade de um cara que acredita na convivência política em que o acordo civilizatório se sobreponha aos cálculos particularistas.

Enquanto isso, sigo quebrando a cara por não assinar contratos. Mas, digo: essa ingenuidade mais me ajuda que me atrapalha, porque ela é irmã da utopia, que, uma vez morta, mata também a fé no futuro e causa nosso próprio cinismo.

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