Desde sempre tive essa sensação. Sentia isso muito antes de Fukuyama escrever aquelas tolices sobre o fim da história, antes, portanto, de a queda da União Soviética ter dado pretexto a tal pensamento descabido. Para mim, os Estados Unidos eram um país imune à história. A história acontecia no resto do mundo, não lá, esse mar de prosperidade e consumo, sustentado pela força militar e pela máquina de fabricar dólares. Não era nada muito racional, era uma coisa meio automática, um reconhecimento quase inconsciente da força do império.
Talvez a última vez em que de algum modo pareceu que se fazia a história nos Estados Unidos tenha sido muito antes de eu nascer, na New Deal, lá nos anos 30. Mas a New Deal foi uma política de governo e não resultou diretamente de lutas sociais, embora Roosevelt, do mesmo modo que Keynes, quisesse salvar o capitalismo, enquanto era acusado de ser comunista.
Depois dos anos 30, a roda da história girou muito, mas parecia que lá não girava: a 2ª Guerra Mundial serviu para consolidar sua hegemonia mundial, o macarthismo serviu para caçar os comunistas e também os que eram acusados de serem comunistas, teve a Coreia e o Vietnam, crise dos mísseis, Woodstock e a contracultura, muitas intervenções na América Latina, o Irã e o Iraque, o 11 de setembro e o Patriot Act, mas a política americana era a mesma e dava sinais de nunca mudar.
Nesse tempo, como desde muito antes, Democratas e Republicanos se alternam no poder, num sistema eleitoral que impõe regras excludentes e, como em nenhum lugar no mundo, formou uma plutocracia. Talvez a única novidade dos últimos anos seja que antes o poder era exercido pelos ricos e agora o é pelos milionários, que tomaram conta do parlamento pela via das fabulosas doações de campanha.
Não que tudo desse na mesma: é enorme a diferença entre Obama e Bush, assim como era entre Carter e Reagan, mas a alternância entre falcões e pombos nunca me passou a ideia de que houvesse uma mudança essencial na natureza do império.
Aliás, se algo mudou nas últimas décadas foi a imposição da agenda liberal ao mundo, a partir de Reagan e a inglesa Tatcher, como para dar razão a Fukuyama.
Hoje – e não sei se sou eu que me impressiono muito –, parece que o mundo dá sinais de exaustão. A cada vez maior concentração de renda, a sucessão de bolhas que estouram, a percepção crescente de que a destruição do meio ambiente pode se tornar catastrófica, tudo isso parece pôr um novo fermento na história.
E pela primeira vez sinto a história chegar aos Estados Unidos. Já faz algum tempo que lá se fortaleceu uma direita intolerante, carola e xenófoba, de que é exemplo mais claro o Tea Party, e que agora tem candidato a presidente, o milionário Donald Trump, que disputa a indicação pelos republicanos.
Mas não tinha visto ainda nada que pudesse parecer um contraponto. Apesar do aumento da miséria e da redução dos benefícios sociais, nenhum questionamento sério ao status quo havia aparecido no âmbito da política antes do surpreendente crescimento de Bernie Sanders como desafiante da insossa e conservadora Hillary Clinton.
Autodeclarado socialista, com um forte discurso contra Wall Street e a concentração de renda e propostas de ensino e saúde gratuitos, programas de renda e aumento do salário mínimo, defesa do ambientalismo, Sanders vai, como Obama não foi, na contramão da elite econômica concentradora e oferece um novo discurso aos americanos.
Claro, em outros anos houve um Jesse Jackson e até mesmo Obama conseguiu uma forte mobilização a partir de um discurso progressista, mas parece muito significativo o surgimento desse candidato que nesta quadra da história polariza de tal maneira o debate político americano, botando o dedo na ferida do capitalismo.
O socialismo de Sanders não é mais que o socialismo democrático dos países nórdicos, não ultrapassa os estreitos limites do bipartidarismo de elite e até agora nenhum analista de renome acredita que ele possa derrotar a candidata da máquina partidária, mas está bonito ver a sua aparição no cenário eleitoral americano.
E a essa altura, talvez só porque de vez em quando a gente precisa acreditar em alguma coisa, até já estou admitindo que a história também pode acontecer nos Estados Unidos.
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Na foto, o jovem Bernie Sanders sendo preso em 1963, quando participava da luta contra a segregação racial em Chicago.
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