Mortes nivelam. Para quase todos, são o início do esquecimento. Poucos sobrevivem na memória coletiva, para se submeterem à apropriação do espólio. Sempre pensei no quão indefesos são os mortos, que já não podem se defender de quem os traduz e fala em seu nome.
Por isso, vejo como violência dizer, depois da morte, fulano era assim, pensava desse jeito, fez tal coisa: ele já não está aqui para reagir e te corrigir, porque só quem pode traduzi-lo é ele próprio.
Por outro lado, se não fizermos isso, não tentarmos interpretá-lo e resgatá-lo, o jogamos à vala comum, àquela segundo a qual todo morto vira boa pessoa, do tipo que não fede nem cheira, e construímos uma unanimidade que o remete à paz do embalsamamento.
Obituários são isso, um ritual para embalsamar. Exigem a unanimidade da homenagem fúnebre, e por isso a dessubstancialização do morto, para que democraticamente receba as pasteurizadas homenagens de todos.
Fosse eu um daqueles raros que, por fortuna ou virtude, têm o espólio disputado, aceitaria com gosto submeter aos pósteros o poder das versões mais estapafúrdias sobre quem fui, quando já não for.
De qualquer maneira, porque é melhor um morto pulsante do que formolizado, digo algumas coisas – porque poucas sei – sobre Fábio Koff.
Não falarei do dirigente de futebol, embora meu gremismo tenha sido bem nutrido pelas conquistas por ele comandadas.
Não, falarei do que veio antes e nem ao menos conheci, porque a primeira vez que dele ouvi falar foi já como dirigente daquele Grêmio vencedor.
Antes, Koff foi juiz. Juiz durante a ditadura. E não daqueles que assinavam mandados de prisão em branco, para serem preenchidos em quartéis.
Uma única vez estive em sua companhia. Foi em 2005, porque concorria na Ajuris em chapa de oposição, e o João Ricardo, que presidia a chapa e tinha obtido seu apoio, me pediu que o entrevistasse.
Fiquei com ele por algumas horas, e ouvi suas declarações, entremeadas por anedotas futebolísticas e forenses. A importância de seu apoio não estava em ser campeão do mundo, mas em ser jagunço, o que significava, para a magistratura do Rio Grande do Sul, ter sido integrante de um grupo que, nos anos 70, se articulou para acabar com regra não escrita, segundo a qual a eleição da Ajuris era apenas homologatória, porque, para chegar a presidente, era necessário ser desembargador e, mais que isso, ungido para o cargo por nosso Tribunal.
Perdi o texto que então escrevi, e lembro de poucas coisas, uma delas que, nos seus tempos de juiz, os churrascos na sede campestre tinham mesas bem demarcadas, uma para desembargadores, os primeiros a serem servidos, e com a melhor carne, e outras para juízes, em ordem decrescente, conforme suas entrâncias.
Se perdi o texto, lembro dos jagunços, já então na maioria aposentados, alguns mortos. Um deles era o Celso Geiger, que dias depois deu declaração a favor da situação, para tentar desfazer o estrago causado pelo apoio que obtivemos do Koff. O nome de Mário Rocha Lopes era sempre lembrado, talvez antes dos outros, ele que, como Koff, fora juiz criminal.
E havia o Bisol, promovido pelo Tribunal para não ser cassado. E o Élvio e o Stefanello, que, antes de serem juízes, foram sindicalistas e participaram de greves bancárias nos anos 60. Também o Ivo Gabriel, que se tornou o primeiro presidente da Ajuris eleito em oposição ao atrelamento vertical ao TJ.
Mas, fosse tudo mera disputa associativa, não se justificaria escrever este texto. Havia muito mais.
Havia juízes que não se dobraram à ditadura, que impediam as prisões arbitrárias, muitas vezes, como no caso de Bisol, colocando em risco a própria carreira (anos antes, houvera a cassação do Uflacker).
Não foi muito diferente com Koff. Ouvi do Fabinho sobre o temor que o acometeu quando colegas de colégio o interpelaram para dizer que seu pai era comunista, porque soltava subversivos e não ia à missa.
Fabinho contou também do convite (ponham-se aspas) para ir ao quartel prestar esclarecimentos, e da consulta feita ao Peruffo, juiz da comarca vizinha, também jagunço, cujo conselho foi o de que não fosse. Não lembro se nessa história o jipe dos milicos parou no fórum ou na frente da casa, o que sei é que voltou ao quartel sem seu passageiro, que nunca mais foi importunado.
Também ouvi Rui Portanova, que entrou na magistratura quando os jagunços estavam em plena forma. Em homenagem na assembleia de fundação da ABJD, o Porta lembrou que Koff, como Rocha Lopes, Bisol e outros, ao saber de uma prisão, dava três horas para que viessem informações. Como nunca vinham, passado o prazo, concedia de ofício habeas corpus, então proibido pela ditadura. Quando necessário para achar um preso, ia pessoalmente à delegacia.
Ouço essas histórias e me pergunto se é justo embalsamá-lo, submetê-lo à louvação vazia que torna os mortos iguais, convenientemente calados diante das injustiças do mundo. Não, se Koff teve a coragem de confrontar a ditadura, não permitindo o encarceramento arbitrário, isso não pode ser esquecido. A lembrança é um modo de dizer aos de hoje que outros antes souberam agir com essa coragem.
Koff cumpriu o ciclo da vida, tornou-se silêncio. E eu abusadamente quebro esse silêncio para dizer: Koff soltou presos e não permitiu que o arbítrio violasse a liberdade. É o meu modo de homenageá-lo e mantê-lo vivo. E escrevo no seu epitáfio imaginário: ele foi juiz.
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