Não, este não é um texto religioso. Apenas retomo um pouco do que escrevi e reli na semana passada. A fé é absolutamente necessária à nossa condição humana. Preciso ter fé para viver humanamente, porque sem ela posso ainda viver uma vida orgânica, degradada, mas nunca com a transcendência que nos é imanente.
E, se digo transcendência, persisto no esclarecimento: não, não se trata de religião, não se trata de metafísica, trata-se de saber se posso acreditar na minha espécie, habitante deste microscópico lugar temporal e espacial que nos foi concedido. Para o cosmo não faz diferença nenhuma existirmos ou deixarmos de existir, e, do mesmo modo como um dia surgimos como espécie, também um dia desapareceremos, certamente bem antes de desaparecer o nosso planeta, ele também um ponto infinitesimal do universo.
Então, a fé de que falo manifesta-se neste plano bem limitado, de uma espécie limitada num tempo e num lugar, também eles limitados. E, no que se refere ao tempo, limito-a ainda mais, para ficar no meu tempo histórico, mais uma modesta projeção para o futuro, para abranger algumas gerações de descendentes. Mais que isso deixo para quem consegue ter a dimensão cósmica que sempre me faltou.
Então, minha fé deve se voltar para esta insignificante espécie, que vive numa fração insignificante de tempo e espaço, e justamente no tempo que me é concedido estar aqui.
Para viver uma vida humana, devo buscar o sublime nessa miséria, e ali depositar minha fé, nutrir minha esperança.
Como na tradição inaugurada pelo zoroastrismo, vejo na humanidade esse conflito constante entre o bem e o mal. Todavia, preocupo-me em não ser maniqueísta, e não acho que nossos atos devam ser todos classificados por essa lógica binária, mas vejo que temos – virtualizadas pelo domínio da tecnologia – as condições para construir uma sociedade harmônica, num mundo ecologicamente sustentado, assim como as temos para em pouco tempo tornar inviável a vida humana na Terra.
Nada disto está dado, e não se pode de antemão dizer o caminho que trilharemos. De minha parte, há muito abandonei as veleidades utópicas que em outros tempos me faziam crer na possibilidade de um paraíso na Terra. Estaremos sempre diante de opções, boas ou ruins, e raramente conseguiremos nos entender sobre o que seja a boa ou a má opção.
Em geral, sou mais pessimista que otimista. O pessimismo da inteligência me faz temer que o mundo já não seja habitável em poucas gerações. Somos uma espécie predadora e o mercado é o modo como exercemos a predação – do mundo e da própria espécie. Se hoje vemos ao vivo a agonia dos ursos polares, logo serão outras espécies, e não tardará a chegar nossa vez. Teremos, provavelmente, tecnologia suficiente para assegurar a sobrevivência da espécie, mas com muito mais dificuldade e com uma população reduzida.
Também sou mais pessimista que otimista quando penso na possibilidade de vivermos uma sociedade democrática e solidária. O poder e a riqueza estão cada vez mais concentrados, as instâncias democráticas formais – basicamente os governos nacionais e os parlamentos, assim como os organismos internacionais – são reféns de alguns comitês constituídos com base no poder econômico, supragovernos capazes de sufocar qualquer governo nacional que queira resistir ao seu comando – veja-se agora a Grécia.
Os dois movimentos – degradação do planeta e concentração da renda e do poder – se dão agora, neste momento, e ficamos alheios ao que acontece, anestesiados, quando não partícipes: a foto do urso famélico nos comove, mas não abrimos mão dos confortos que causam o aquecimento global.
Mas, se assim enfatizo meu pessimismo, como posso falar em fé e esperança?
Porque, se me faltam a fé e a esperança, não vejo sentido em almejar mais deste mundo que meu pobre conforto pessoal, meu e de meus familiares, e este será o limite da minha existência. Mesmo tão numerosos os que não pensam sua vida além desse estreito limite, não consigo ver o ser humano em sua plenitude, se assim conformado.
Então, estou condenado a transpor o limite do conformismo, a não aceitar que o pessimismo da inteligência arraste consigo a vontade. O pessimismo da vontade é a resignação, o derrotismo de quem perdeu toda esperança e se desespera.
A esperança é a marca do otimismo da vontade, necessário para temperar o pessimismo da inteligência, para não nos rendermos e a vida não perder seu sentido para além de sua dimensão estritamente biológica.
Nessa tensão entre pessimismo da inteligência e otimismo da vontade, preciso constantemente contestar a mim próprio e a quem me cerca. Quando vejo demasiado otimismo, é o pessimismo da inteligência que grita, mandando pisar no chão; quando vejo desânimo, me sinto obrigado a apontar soluções.
E tudo isso é o caminho que fazemos a cada passo, sem ao menos ter ideia do destino, porque ele muda de lugar a cada passo que damos.
E dia após dia vemos mil coisas que nos dizem para desistirmos e outras mil que nos interpelam a prosseguirmos.
E a fé e a esperança se veem também aplicadas a cada fato diário, a cada acontecimento, e muitas vezes um mesmo acontecimento pode permitir uma leitura otimista ou uma pessimista, dependendo de quem o leia, ou mesmo as duas leituras combinadas para o mesmo leitor.
O otimismo e o pessimismo são cambiantes, e ora um suplanta o outro. Num dia, acredito na possibilidade de uma grande mobilização internacional que consiga impor, em escala planetária, a implantação do imposto sobre fortunas; noutro, duvido da possibilidade de melhorar o trânsito da minha cidade.
Assim é a esperança: ela cresce e míngua, e muitas vezes nem sei por que isso acontece. Será que um pequeno gesto de solidariedade de uma única pessoa me autoriza a acreditar na humanidade? Às vezes acho que sim, as vezes acho que não.
Mas sei que preciso acreditar, porque resignar-se e desesperar-se não é para quem deseja viver.
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Este texto ainda vem a propósito daquele de três dias atrás (Dante, Gramsci, Bobbio, Levi), em que senti ter dito menos que queria (claro que nem agora disse tudo, o que de resto é impossível). Queria escrever também sobre a política nacional, inclusive para responder a quem, porque depositei alguma esperança no Senado, achou que meus óculos estão muito cor-de-rosa, mas concluí que misturaria alhos com bugalhos. Então, talvez venha outro texto sobre esperança. Seria talvez esperança aplicada à política brasileira. Talvez venha, talvez não venha. Tenham esperança.
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