Me disseram: lê o livro do Mandel sobre o fascismo. Poderia ter sido outro autor, porque importava o objetivo: a recomendação foi dada para que compreendesse a natureza do movimento que abalou a Europa e ecoou no mundo do entreguerras, e parasse de dizer, como outros amigos também faziam, que a Ditadura Militar era fascista.
Bons tempos aqueles, da acumulação primitiva de conceitos: lembro também do professor de História, que propôs debater a possibilidade de reedição do populismo trabalhista. Entendia ele que haviam se exaurido as condições históricas que permitiram a aliança de classes característica daquele período e agora se abriam as portas para um novo partido de esquerda, democrático e de massas, que disputaria a hegemonia entre os trabalhadores e a classe média urbana. Partido desse tipo veio, e fico imaginando o mesmo professor e alunos naquela mesma sala de aula, discutindo retrospectivamente a sua trajetória.
Vejam que na Ditadura ninguém teve a brilhante ideia da escola sem partido, e essas discussões se faziam, ainda que de vez em quando alguém soprasse a palavra DOPS.
Mas não era sobre o populismo ou o partido de esquerda, democrático e de massas que eu queria falar, era sobre o fascismo mesmo. Ou melhor: sobre essa palavra equívoca, que – então aprendi – não deveria ter seu nome pronunciado em vão. Aprendi tão bem que a partir daí passei a corrigir os interlocutores que a usavam, porque concluí que o uso era sempre indevido.
Mas há palavras que são persistentes, não nos abandonam. Fascismo, e em menor grau nazismo, é uma dessas sobreviventes, que, como um vírus resistente aos antibióticos, se multiplica e se altera geneticamente, agregando acepções.
Há – é claro – esse uso, muito comum, explicado pela Lei de Godwin: na medida em que se acirra uma discussão, a possibilidade de que surja uma comparação envolvendo Adolf Hitler ou o nazismo se aproxima de 1. Nesse caso, ainda que as acusações tenham por objetivo brindar o interlocutor com o atributo da intolerância, costumam não passar de uma altercação inócua.
Deixo de lado Godwin, porque ainda assim a palavra surfa e hoje está no centro dos debates. Eu mesmo a utilizei algumas vezes sem o rigor que Mandel me recomendou em outros tempos. Por isso, ruborizei quando vi compartilhado, dum saite ligado ao MBL ou congênere, artigo que denunciava a ignorância histórica de quem hoje diz fascismo.
Fazia sentido que publicassem semelhante artigo: no uso hoje corrente, eles próprios e seus seguidores são candidatos à designação. Por isso, era necessário recuperar o sentido histórico da palavra, do mesmo modo como Mandel fizera, neste caso para se livrarem da pecha. Mas, a leitura revelou um coquetel que mistura verdades com mentiras, a começar pela atribuição da proximidade ideológica entre, de um lado, nazistas e fascistas e, de outro, socialistas e comunistas.
Muitos incomodados, cujas notas na disciplina de História não vieram acompanhadas de louvor, aproveitaram o ensejo para, com aquele ar de “vão estudar”, compartilharem as explicações. Mas não era essa crítica que me pegaria.
De qualquer maneira, não basta superar Godwin ou descartar as autojustificações: continua no ar aquela dúvida acerca da propriedade de se usar a expressão fascismo.
É claro que não estamos diante daquele fenômeno de oitenta anos atrás, e nunca mais veremos Mussolini passar em revista seus camisas pretas. O mundo é outro e não voltaremos às condições históricas que forjaram o fascismo histórico.
No entanto, um pouco porque a palavra se tornou polissêmica e agregou outros significados, um pouco porque algumas das características do fascismo podem se reproduzir sob dadas condições históricas, faz sentido apreciar a pertinência de seu uso. Aparentemente, a expressão tem razão de ser nos dias que correm.
Faltava à Ditadura Militar, que também apelou para o verde-amarelo, apelo popular, talvez a primeira característica do fascismo. Ela não tinha uma base social representada por um movimento de massas, como recentemente se formou, também com as cores nacionais, embora seja de fachada esse novo nacionalismo, em que os líderes preferem Miami e se prepara a desnacionalização da economia.
E a inspiração não está nos líderes do Eixo, de resto varridos da História por sua derrota na guerra; vem da direita americana, que se organizou como centro de inteligência (ponha-se aqui uma marca de ironia) e tem dinheiro para financiar movimentos afins.
E se, como no fascismo, agora há massa, agregou-se a ela uma outra característica fascista: a adesão hipnótica a ideias comuns que movem esse coletivo, na sua luta redentora contra os inimigos de sempre, que precisam ser eliminados para que a sociedade se purifique, livrando-se daquelas coisas odiosas, como corrupção e criminalidade.
E nesse processo não há lugar para a inteligência nem para o diálogo: a verdade, de uma simplicidade atroz, está posta e não admite questionamentos.
Há uma massa disponível para isso, como no fascismo, à espera de líderes carismáticos a serem seguidos. E há quem se credencie a líder.
Quando vejo essas coisas, não me sinto tão desautorizado ao uso da palavra.
Claro, tenho dúvidas sobre a manutenção dessa base social quando a política de retirada de direitos começar a fazer efeito. Mas, se por esse motivo tenho dúvida, também não posso esquecer que foi na crise que o fascismo cresceu.
Neste momento, as ruas estão vazias. Mas há algo no ar. Meu temor é que não se dissipe antes que os solavancos causados pela tragédia façam despertar a razão.
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