Quando escrevi A barbárie condecorada, sabia que mexia num vespeiro. O resultado foi descrito no texto seguinte, Juiz de merda. Às vezes acontece isso, um assunto que nem ao menos é da tua predileção se impõe e, pelo caráter polêmico, acaba por te levar a um caminho que não querias trilhar.
Mas aconteceu, o tema rendeu, e de certo modo fui enredado por ele. Assim, quando alguém mais fala sobre criminalidade ou violência policial, já me anteno. Algumas vezes penso: isso aí foi uma resposta ao que escrevi, mas logo me dou conta de que não sou o único que escreve semelhantes coisas, e certamente não o mais lido. Mas a pessoalização é de menos, e acabo vendo um debate com minhas ideias, mesmo quando quem escreve nem ao menos sabe da minha existência.
Desse modo, sou levado a escrever mais sobre o assunto, o que gera um círculo vicioso, porque logo aparece alguém que diz: olha aquele juiz de novo, escrevendo um daqueles textos.
E tem também aquilo que talvez possa chamar de fonte primária de debate: comentários feitos, com maior ou menor grau de agressividade, aos meus textos. Não respondi a nenhum, mas alguns merecem resposta.
Há um, vindo, ao que parece, de um operador jurídico, que diz assim: Lendo esse texto, como costumeiramente faço, identifiquei outra ladainha: a de que a criminalidade tem origem em injustiça social! Fosse assim, não teríamos criminosos como os abastados chefes políticos, etc.! Crime tem uma origem só: a escolha pessoal do criminoso! Ele decide agir criminosamente! Aliás, como são todas as decisões da nossa vida!!
Está lá, faz dias, esperando uma resposta. Bem, resolvi falar aqui mesmo. Não sei bem por onde começar, mas fico tentado a dizer ao comentador que ele se enganou comigo, porque também acho que o crime é uma escolha pessoal do criminoso.
Já nas minhas confusões teológicas infantis, eu não conseguia acreditar em histórias que de vez em quando ouvia, de que nosso destino está previamente traçado, já nascemos escolhidos por Deus ou por ele desgraçados. Sempre acreditei no livre arbítrio e na autonomia da vontade. Logo, penso em dizer: fique tranquilo, porque também acho que o crime é uma opção pessoal.
Se, por exemplo, pudéssemos adivinhar o futuro de uma classe de trinta alunos de primeiro ano da periferia pobre, talvez descobríssemos que só um ou dois escolherão ser assaltantes, outros dois, traficantes. Não tenho dúvida de que a grande maioria escolherá profissões mais nobres: diarista, ajudante de obras, prostituta, gari. Alguns, com mais habilidade, competência ou sorte, chegarão mesmo a comerciários, cobradores de ônibus, pequenos comerciantes ou até mesmo policiais, que talvez um dia venham a se encontrar com um ex-colega criminoso num tiroteio.
Também entre os aluninhos do primeiro ano de um colégio particular de bairro nobre haverá escolhas: vão decidir entre ser médicos, advogados, catedráticos ou mesmo se preparar para suceder o pai na sua empresa. Aqui e ali haverá alguém que se desviará e ganhará muito dinheiro com corrupção.
Chegados nesse ponto, precisarei fazer algumas observações, das quais, acredito, nem meu comentador discordará. Para começar, parece certo que, do mesmo modo como do primeiro grupo não sairá um médico e do segundo não sairá um ajudante de obras, do primeiro também não sairá um político corrupto e do segundo não um assaltante.
Aquele bandido bom de que falam, que merece o tiro que lhe é dado, sairá só do primeiro grupo; o do segundo grupo não é propriamente um bandido, porque corrupto é coisa de outro naipe, e ninguém dirá que corrupto bom é corrupto morto.
Dito isso, penso que nós dois, o comentador e eu, encontramos dificuldades com nossa teoria.
E elas aumentarão quando um gaiato nos disser que a criminalidade da Suécia é quase zero. Afinal, poderá ele dizer, se tudo é uma questão de escolha, por que tão poucos suecos e tantos brasileiros escolhem ser criminosos? E, se respondermos que a Suécia é um país rico, ele poderá trazer uma lista de países africanos de criminalidade baixa. Aliás, há quem diga que a criminalidade é maior não por ser pobre o país, mas porque é grande a desigualdade de renda, afirmação que evidentemente não serve ao nosso argumento, porque é o mesmo que dizer que a injustiça social causa a criminalidade.
Por outro lado, se simplesmente, e sem qualquer outra consideração, afirmarmos que ela é uma opção individual, como vamos explicar essa diferença de criminalidade entre o Brasil e outros países, como nosso vizinho Uruguai?
Nesse caso, talvez um espertinho diga que é porque aqui a polícia mata pouco e os juízes soltam muito, mas nem isso seria uma boa resposta, porque a polícia brasileira é uma das que mais matam e já somos o terceiro país com mais presos. Outro talvez diga que é o povinho que Deus botou aqui, mas seria difícil sustentarmos semelhante tese. Além disso, podemos comparar nossa criminalidade de hoje com a de vinte anos atrás: por que temos tantos criminosos mais do que tínhamos antes, se já faz um tempo que esse povinho anda por aqui?
Então, temos um acordo e um problema: concordamos que criminosos são criminosas porque escolheram, mas está difícil explicarmos o motivo pelo qual aqui o número de criminosos é cada vez maior.
Talvez devamos ceder um pouco e, parafraseando um antigo pensador, dizer que as pessoas escolhem o que farão da vida, inclusive optar pelo crime, mas o fazem sob por certas condições, sobre as quais elas não têm controle.
Mas acho melhor parar por aqui, senão já vou me ver novamente dando explicações ao próximo comentador.
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