Eram 13:30 de 18 de julho de 1997. Ana caminhava pelo acostamento da Baltazar em direção à parada, onde pegaria o ônibus para a casa da mãe, quando foi atropelada por um motorista bêbado. Ana quebrou o joelho e o antebraço direitos e teve lesões graves na face. Permaneceu três semanas internada.
Menos de um ano depois, o motorista estava condenado criminalmente e Ana postulou a liquidação da sentença criminal, depois seguida de cumprimento de sentença.
Se muita coisa aconteceu no mundo desde então, também no processo os astros conspiraram para que as coisas não andassem. Por exemplo? Por exemplo, Ana era pobre, beneficiária da gratuidade judiciária, e a perícia demorou quatro anos para ser concluída. Além disso, o réu mudava a toda hora de endereço e não era mais localizado. Depois ele morreu e em seguida morreu também seu advogado. Ana abriu o inventário e teve dificuldades para localizar os herdeiros. O advogado de Ana achou que ela receberia o crédito no inventário e abandonou a execução, mas o inventário não andava.
O fato é que, passados quase vinte anos, Ana com novo advogado, os herdeiros também com novo advogado, o processo começou a andar e apareceram alguns bens. Poucos: um prédio no Partenon, um terreno na Agronomia, um imóvel rural de menos de um hectare em Palmares. Detalhe: um dos imóveis em condomínio com terceiro e todos com meação.
Era a típica situação que sugeria uma audiência de conciliação, e ela aconteceu quando já se aproximava o final da tarde da quarta-feira.
De um lado, Ana, de outro Teresa, ex-mulher do réu, e seu filho Alexandre. Começo explicando o motivo que me levou a marcar a audiência, que acho melhor conseguirem separar um dos imóveis para Ana, ao invés de terem de vender os três, tirando um pouco de dinheiro de cada um; depois os advogados dizem que é isso que pensam em fazer.
Mas me surpreendo quando Alexandre pede a palavra e começa a falar.
Ele quebra o script que eu havia pensado para a audiência, e inicia dizendo do quanto esperou para viver este momento, de poder encarar Ana de frente. Diz imaginar todo o sofrimento pelo qual ela passou, que a família sabe que deve reparar o mal. Diz também, num misto de censura e carinho póstumos, que o pai não era fácil, se perdeu na bebida, já não tinha contato com a família quando aconteceu o acidente, e que esta só soube do fato muitos anos depois, quando citada no inventário.
Ana responde. Também compreende as dificuldades da família, mas lembra dos seis meses em que ficou imobilizada sobre uma cama, dos dois anos de fisioterapia para voltar a caminhar, do tempo em que não pôde trabalhar e foi sustentada pela mãe, das necessidades por que passou e das dificuldades que teve para pagar o tratamento, dos pinos que doem no braço e do caminhar incerto, dos movimentos limitados na face.
Teresa também fala. Sofreu muito quando casada e em 97 já estava separada. Sofreu muito com as coisas que o ex-marido aprontava, e deseja que o sofrimento de Ana seja reparado. Pede desculpas por estar assim nervosa, mas é o cansaço de noites insones no hospital, onde se alterna com a nora para cuidar do outro filho, que quebrou a bacia em acidente. Apressa-se a dizer que só por isso ele não está aí, mas concorda com tudo o que for acertado.
Assim segue a audiência, bem encaminhada pelo desejo de todos de resolverem essa parte pendente de suas vidas. Enquanto os advogados discutem detalhes, olho para Alexandre, taxista de quarenta e poucos anos, que aparenta mais que isso, e por um momento me distraio, imaginando como será para ele a reforma da Previdência.
O fato é que, se o futuro é ameaçador, há um problema bem mais urgente para resolver, porque o acordo é de que o terreno em que ele mora será vendido para pagar Ana. Em mais uns meses, terá de sair da casa onde mora há anos, e não sabe se conseguirá comprar outra, ainda que mais modesta.
Mas há um ar de alívio na audiência, um ar de reconciliação, misto de alegria e tristeza, de perda e reconciliação. Há também uma prestação de contas de Teresa e Alexandre com quem há anos os abandonou, prestação de contas que tem o ar da censura e do sacrifício, mas também, finalmente, do perdão e do amor resgatado.
Termina a audiência. Alexandre abraça Ana e sai. Também saio de fininho, com um nó na garganta, quando vejo o abraço emocionado entre Ana e Teresa. Enquanto me afasto, ouço Ana dizer a Teresa que seja forte, que o filho logo melhora.
São 18:15 de 10 de maio de 2017. A lua cheia se ergue por detrás do Campo da Tuca.
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