Às vezes, imagino o sistema penal como se fosse um sistema educacional. Sei que em tese faz sentido, porque a pena deveria ter esse caráter pedagógico, de recuperação. Mas também sei que falo bobagem, porque nem o sistema foi criado para isso, nem as pessoas o querem assim. E não poderiam, porque educar pressupõe amar, ainda que genericamente, como semelhantes.
Mas é um exercício: você pensa que a pena é um intervalo na vida do sujeito, em que ele terá oportunidade de pensar sobre a bobagem que fez, estudar, aprender uma profissão e ao final sair daí para um emprego honesto.
Se há essa semelhança, dá também para inverter o raciocínio, e imaginar o sistema educacional como sistema penal. Cabe a analogia, porque sempre haverá aquele aluno que, por cometer alguma travessura, se sujeitará a uma punição. Aliás, é o que acontece também no primeiro lugar de educação, a família. Por mais libertários que sejam os pais, sempre haverá o momento em que imporão algum castigo, ainda que consista apenas num breve momento sem celular.
Daí que, com essa minha propensão a comparações e a análises transpositivas, passei a imaginar a delação premiada no colégio. Incorporada como método pedagógico, ela poderia ser a grande novidade em nossas instituições de ensino.
Funcionaria mais ou menos do mesmo jeito como nos informam que acontece lá onde buscamos a novidade, aplicando-se principalmente para aquelas transgressões disciplinares cometidas em grupo. Assim, quando acontecesse uma pichação no banheiro com participação de vários alunos, um deles, talvez o Joãozinho, que ficou de sentinela na porta, entregaria o grupo em troca de uma simples advertência, enquanto aos demais a pena, mais grave, seria de suspensão, ou até de expulsão, se fosse caso de reincidência.
Claro que teria de haver algumas adaptações, porque o colégio funciona como um microcosmo, e o Joãozinho continuaria lá com a pecha de traíra. Não poderia, como fazem os aqui de fora, que passarão a viver na Europa com os dólares que sobraram, subtrair-se do olhar reprovador dos colegas, que não toleram os X9. Aliás, acho difícil encontrar na história figuras tão desprezadas quanto os traidores. Isso até serem recuperados nos processos penais, em que se tornaram essenciais para desvelar os grandes esquemas, e a infâmia se converteu em prêmio.
Mas, voltemos aos judas escolares. Introduzida a delação como prática, os colégios teriam de se adaptar à novidade, ainda sem saber direito o que fazer.
Imagino então o diretor de um obscuro colégio interiorano, conhecido por sua truculência, trancar o Joãozinho numa pequena sala, dizendo daqui tu não sai enquanto não entregar o esquema. Evidentemente, Joãozinho não poderá dar qualquer resposta, e, se vier com tergiversações, apenas prolongará sua reclusão.
Não sei se esse mesmo diretor ou algum preceptor que tenha ideia do que aconteceu dirá, se ele entregar o Zequinha: não vem com enrolação, sei muito bem que o chefe do esquema é o Pedrinho. E Joãozinho seguirá na sala até dar a resposta certa.
O fato é que, nessa fase de introdução da novidade pedagógica, as escolas seguirão tateando. Talvez o colégio mais caro lá da capital aja de outro modo e introduza o método com mais cautela. Poderá não trancar o Joãozinho na sala, mas esperar que ele venha espontaneamente.
Não que esteja livre de dificuldades. Poderá, por exemplo, acontecer ali de o aluno mais rico da sala, preocupado por ter deixado pistas dos malfeitos, vir entregar espontaneamente metade da turma e ainda alguns professores: paguei para Fulano me dar cola, dei tanto a Beltrano para responder a chamada por mim, comprei o professor Sicrano para me passar de ano. E, com a delação, o aluno rico talvez consiga uma recomendação para estudar no exterior.
Aliás, tendo por pressuposto que a delação serve para o bagrinho entregar o esquema do tubarão, um problema para os colégios será saber como reconhecer essa complexa taxonomia e evitar que, ao delatar o bagrinho, o tubarão seja perdoado.
Nesse ponto, me pergunto quem é bagrinho e quem é tubarão num sistema político estruturalmente corrupto e organizado de modo a fazer o jogo dos grandes oligopólios. Quem está a serviço de quem? Como se dará a delação quando envolver o aluno mais rico da sala?
Só que nesse ponto se esgota minha capacidade de produzir metáforas. A única coisa que sei é que nenhuma delação será capaz de mudar o sistema, e para isso deveriam ser bem diferentes nossas preocupações. Mas aí mudo de assunto, o que não se deve fazer na última frase de um texto.
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A foto é da Professora Umbridge, que certamente seria capaz de prender os alunos na masmorra, se fosse para entregarem o Harry Potter.
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