Criticar, ma non troppo. Ou: por uma teoria que atenda à demanda social

Digam-me que estou errado, que não entendo nada. Se isso acontecer, ficarei feliz por me preocupar em vão por algo já resolvido, embora um tanto vexado por ter falado publicamente besteira. Mas isso será o de menos, porque o que mais vejo na rede é gente encher a boca, posar de entendido e dizer bobagens que passam por verdade.


Vamos à questão. Concordo com muitas críticas. Para começar, não consigo entender como um juiz de Londrina seja competente para julgar ações sobre corrupção da Petrobrás. Isso não me entra na cabeça. Também vejo com preocupação todas essas prisões provisórias, as delações premiadas e tantas coisas que acontecem nesse processo.

Claro: aqui é necessário lembrar que, como também no processo do mensalão, aquilo que acontece no processo não necessariamente é o que dizem que acontece. Somos especialistas em inferir, principalmente quando há tantos interesses em jogo e está no ar um clima de ódio, para o qual o que menos interessa é a verdade.

Mas não posso fugir do ponto. São muitas as críticas ao modo como é conduzido o processo da Lava Jato (e, como adiantei, em parte compartilho delas, ao menos como preocupação). Como na vida não nos é dado o direito de sermos ingênuos, vou desconsiderar as críticas que vêm dos próprios réus e seus advogados e dos partidos que podem perder com as condenações, para me fixar naquelas que vem dos que respeitosamente chamo a esquerda penal.

Não que as críticas sejam diferentes, até porque os primeiros se utilizam do arcabouço teórico das teorias garantistas, mas só posso tê-las como sinceras, fundadas exclusivamente em convicções teóricas, quando formuladas por quem não está tão interessado no resultado.

Digo isso embora, sob certo aspecto, todos nós, incluindo os mencionados juristas, tenhamos interesse num resultado, porque, como cidadãos brasileiros, torcemos muito para que a corrupção seja, se não erradicada, porque isso é impossível, ao menos posta sob controle e submetida a investigações que tenham potencial para terminar em condenações exemplares.

E isso não é só um pensamento moralista, é muito mais, é a posição de quem sabe que o Estado sangra com a ação dessas quadrilhas, que a própria democracia é refém de máfias e de que vivemos numa sociedade enferma. É necessário resgatarmos nossa autoestima de brasileiros, é necessário acreditarmos em nossas instituições, é necessário que o governo tenha recursos para investir em desenvolvimento e em programas sociais. Para tudo isso, é fundamental as operações policiais que identificam o crime organizado incrustado no aparelho estatal terem como resultado a condenação dos culpados, a recuperação dos valores desviados e, principalmente, a consolidação de um novo patamar de controle que dificulte esse tipo de prática.

Feita essa moldura, voltemos às críticas. Há que se reconhecer o padrão civilizatório de que se reveste o processo penal fundado num sistema de garantias historicamente consolidadas, em que se busca acima de tudo assegurar o direito de defesa. A propósito, penso que a expressão jurisdicional máxima da observância das garantias foi a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal anterior ao mensalão. O STF dava sustentação a uma jurisdição garantista, embora ironicamente, até porque é difícil a um pobre ver seu processo chegar ao Supremo, os beneficiários desse sistema de garantias tenham sido fundamentalmente os ricos. Os pobres muito pouco se beneficiavam dessa jurisprudência, mesmo porque é inegável a existência de uma forte concepção punitiva em parcela considerável da base da magistratura.

Por outro lado, parece que o mensalão significou – pelo menos para quem, como eu, não acredita na tese conspiratória de que o Supremo assim decidiu apenas para prejudicar o PT – um ponto de inflexão, em que se relativizaram algumas concepções antes em vigor, em busca de uma eficácia condenatória.

O que se tem visto nos processos mais recentes é uma relativização das garantias, e por isso é compreensível a resistência de tantos teóricos da esquerda penal ao que vem acontecendo.

O problema que eu vejo, sobre o qual há anos tenho conversado com colegas, e desde já com a ressalva de que falo mais por intuição que por qualquer fundamento teórico, é que há uma posição principista, a partir da qual se constrói um discurso de negação, que tende a cair no vazio.

Eu sei, o juiz deve ser um garantidor, concordo com isso, mas penso que a simples crítica aos excessos praticados nessas ações midiáticas com pluralidade de réus, envolvendo bem organizadas quadrilhas, que se valem de sofisticados métodos, acaba por cair no vazio. Tenho uma séria desconfiança de que o arcabouço teórico garantista não oferece instrumentos suficientes para enfrentar esse tipo de crime.

Claro que para essa minha afirmação há uma crítica mortal: para justificar um resultado, propõe-se abrir mão de princípios, num pragmatismo que não pode dar em boa coisa. E tem razão quem assim acusa: a relativização de princípios é o primeiro passo para o seu abandono e, no caso, para a supressão de garantias democráticas por demais caras.

Corretamente me dirão: onde passa um boi passa uma boiada. Mas terão de ouvir em resposta: os cães ladram enquanto a caravana passa. Certamente hão de entender que não estou ofendendo ninguém, mas uso o provérbio para dizer que há uma situação de fato que não pode ser enfrentada apenas por negativas.

E – isso é fundamental ficar marcado – não estamos a tratar de crimes quaisquer, mas de crimes que solapam a ordem democrática, que causam prejuízos econômicos enormes e criam um estado de descrença generalizado pela coisa pública. Em outras palavras, se o Estado não souber lhes dar respostas adequadas, o resultado disso poderá ser funesto para a própria democracia.

Novamente esclareço e me defendo por antecipação: não quero dizer que os fins justificam os meios e sei muito bem que os meios muitas vezes agem de tal modo que até mesmo desvirtuam os fins. Apenas considero que toda a teoria social deve ser submetida ao teste social. Uma teoria que não dê conta das necessidades sociais acabará no lixo.

E o desafio que vejo posto aos que, com base em uma compreensão absolutamente democrática do direito de defesa e do processo penal, fazem hoje a crítica da condução do processo da Lava Jato, é o de que consigam superar a mera negação e, sem abrir mão de seus princípios, se deem conta, a partir da absoluta necessidade social de se encontrarem meios de chegar à punição quando partes do Estado são devoradas pelo crime organizado, da necessidade de uma teoria que, mantendo a preocupação com as garantias, assegure a possibilidade de fazer uso de meios de enfrentamento eficaz a esse tipo de crime.

Se não forem capazes disso, acabarão por falar sozinhos, o que será uma lástima.

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