Tomei um tempo e fui olhar os comentários ao texto do último domingo, no qual critiquei meu amigo que compartilhou a foto da criança negra famélica.
Quando se entra numa polêmica, sempre haverá os prós e o contras, os que concordam e os que discordam, e nesse caso não seria diferente. Aliás, a tendência era a de que aqui o debate repercutisse mais justamente pelo que havia de provocação – provocação na foto e no texto original e contraprovocação na minha resposta.
Vou ignorar os comentários rebaixados, em que o preconceito é explicitamente reafirmado, e também os de concordância, porque deles não resulta a necessidade de novos comentários.
Aliás, faço, sim, uma referência a comentário de concordância, para dizer da satisfação, emoção até, com que li o amigo homossexual que me compartilhou e disse que o texto o representava, assim como a milhares de pessoas que são objeto de desprezo e discriminação. Esse comentário mais as novas amizades de homossexuais são a melhor resposta a outro comentário, de quem disse não compreender o motivo de tanto barulho, porque os homossexuais já tinham tudo o que queriam.
É uma resposta igualmente aos que me disseram “achei bom teu texto, mas discordo, compartilhei aquela foto e não tenho nada de homofóbico”. A esses eu quero dizer que nem sempre o preconceito está escrito na testa e nem sempre temos autoconsciência dele; geralmente é o contrário: nos consideramos pessoas esclarecidas e mal nos damos conta de como aquele colorido da internet nos incomoda.
O que eu não disse, e digo agora sem medo de errar, é que não tenho a menor dúvida de que a maior parte das pessoas que botou o arco-íris no seu perfil exerce a solidariedade na sua vida com maior frequência e intensidade que a maior parte daquelas que compartilharam a criança famélica.
Aliás, nisso estava o outro lado do que de ruim trazia aquela mensagem: a hipocrisia do discurso de ocasião, de quem no seu dia-a-dia não tem preocupação com o próximo, mas ataca com uma foto chocante, para acusar quem teve a ousadia de se solidarizar com fato menos digno.
Claro que há também aquelas pessoas que são sinceramente generosas com o próximo mas guardam preconceitos quando se trata da homossexualidade. Mas, mesmo entre estas, porque generosidade e compreensão costumam caminhar de mãos dadas, penso que terá havido uma maior aceitação do colorido facebookiano.
Quero também dizer a um dos comentaristas, que disse fazer o bem sem propagandear em seu perfil, que não tenho nada contra quem posta fotos de viagem, cachorros, gatos, comida, vinho ou o que quer que seja: o ponto não é este; o ponto é que, na minha rápida amostragem, verifiquei que as pessoas que compartilharam a fome africana e criticaram o arco-íris costumam ter perfil com essa característica. Então, meu amigo, se não entendeste, não critiquei teu perfil, apenas apontei a incoerência de quem usou aquela foto apelativa para criticar o uso do celebratepride, como se fosse obrigação das pessoas estampar a miséria em seu perfil.
Por fim, e porque o achei mais instigante, menciono o comentário que, sem se afastar tanto no conteúdo da foto e texto da criança africana, fez uma sincera defesa da necessidade de uma maior atenção à questão da desigualdade social, de certo modo propondo hierarquizar a solidariedade.
Sobre esse comentário, quero dizer: concordo. Além disso, quero dizer: discordo.
A enorme disparidade social no Brasil, à qual se associa em grande medida o preconceito racial, tem um efeito tão mais perverso que o preconceito decorrente da orientação sexual justamente porque tem por base a divisão entre classes e o enorme fosso entre as classes no nosso país.
O preconceito de classe caminha lado a lado ao preconceito de cor, e mesmo quem não discrimine o negro por ser negro provavelmente o discriminará por ser pobre. São coisas que fazem parte do nosso dia-a-dia e nem as percebemos.
Sugestão: na próxima vez em que você for à praça de alimentação de um shopping, dê uma olhada discreta para as outras mesas, veja quem ali está sentado; depois olhe para quem atende nos restaurantes e lanchonetes; por fim, observe quem limpa o chão e recolhe as bandejas. Certamente, você verá uma pequena amostra da nossa separação em classes, estampada na cor das pessoas. E isso que não terá visto os muito ricos, que dificilmente irão à praça da alimentação de um shopping, nem os muito pobres, que não têm motivo para ir e nem seriam aceitos.
Reconheço: esse fosso – escrevi sobre isso em Nós, classe média, e o outro – é muito mais cruel e mais difícil de enfrentar. Entre os que comem, os que servem e os que limpam há uma diferença de fortuna e de cor, atravessada por um preconceito que se alimenta diariamente com o lugar que ocupamos na sociedade, com nossa obstinada luta para manter nossos privilégios de classe média.
Não preciso ser racista para manter pobre o negro, porque já me empenho suficientemente para manter pobre o pobre, que, por acaso, com frequência é negro.
E, mesmo que por mágica o preconceito social fosse repentinamente varrido do nosso país, isso não resolveria a questão da pobreza e da desigualdade de renda, nem permitiria aos negros enriquecerem, porque as leis da economia, para as quais a ascensão social é um fenômeno raríssimo, se encarregariam de manter as coisas como estão.
Por isso são tão fundamentais as ações afirmativas, como programas de renda mínima e políticas de cotas raciais, com as quais não sei se concordam os compartilhadores da foto da pobreza.
Certamente, a representação de homossexuais em cada um dos diferentes grupos identificados no shopping – os que comem, os que servem, os que limpam – será semelhante, e na maior parte deles a orientação sexual não estará estampada como está indelevelmente a cor da pele. A homossexualidade atravessa as classes sociais e em geral não tem relação imediata com opressão econômica.
É bem provável que em uma geração se tenha reduzido em muito a homofobia, mas provavelmente várias gerações não serão suficientes para reduzir significativamente a pobreza, em particular a pobreza associada à cor.
Por, isso, concordo com o comentário de quem acha mais importante a solidariedade orientada por esse critério.
Mas também discordo.
Em primeiro lugar, mesmo sendo certo que a homossexualidade se manifesta em todas as classes sociais, não tenho dúvida de que potencializa o preconceito quando atinge quem de outro modo já é vítima de discriminação. Se ser preto e pobre gera discriminação, a discriminação só tende a aumentar se for preto, pobre e gay.
Além disso, hierarquizar preconceitos pode, no limite, nos levar a dizer que alguns deles são menos graves que outros ou até que são socialmente aceitáveis. É o que parece acontecer, por exemplo, no futebol: chamar goleiro de macaco gera um escândalo; chamar goleiro de bicha, como as torcidas brasileiras têm feito em uníssono a cada tiro de meta batido, não tem problema.
A questão é que o sexo é lugar de opressão secular: por ele se exerce controle e se exige submissão; nele se exclui e se pune o diferente; nele se exerce a autorrepressão e, uma vez devidamente reprimido, se exerce a repressão sobre os outros. Foi o que vi quando senti a censura de quem não aceitou tantos arco-íris em seu Feice: os que ousavam compartilhar a alegria gay eram insensíveis que não se preocupavam com a miséria do mundo, e por isso tinham que expiar seu pecado com a culpa.
E não se preocupe quem corretamente vê quão mais grave é a questão social: a solidariedade, a luta contra o preconceito, é como o coração de mãe, que não tem limite para novas demandas, que sempre tem lugar para mais. Por isso, é de desconfiar de quem é seletivo na solidariedade: não é algo para ser escolhido, e ser solidário com uma coisa não te desabilita para ser com outra.
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