Clima, laqueadura, aborto

Penso, enquanto caminho até o cabeleireiro, na falta de inspiração – ou disposição – para escrever. Pouca gente no sábado, ele termina de falar no celular e depois me atende. Corte mais simples que o de Neymar: máquina dois do lado, três em cima.

Sou um cliente silencioso, mas estamos só nós dois, e a conversa é comigo mesmo, um chiste sobre o frio, tipo bravata de gaúcho: vem um friozinho aí, tem que botar a camisa de pelúcia.

Segue a conversa sobre clima, eu falo em aquecimento global e ele me contesta, bem informado sobre alarmistas e céticos, e vaticinando trinta anos de esfriamento da Terra, em decorrência de uma redução da atividade solar, que teria iniciado em 2012. Contra-ataco, dizendo que nos últimos três anos a temperatura média da Terra bateu recordes, e ele me contesta mais uma vez, dizendo que os alarmistas tem falsificado seus dados. Falo do degelo dos polos, e ele nega, dizendo que o desprendimento de uma placa gigante da Antártida apenas foi consequência da pressão de placas geladas que continuam aumentando no interior do continente.

A conversa é tão rápida quanto o corte a máquina e me despeço dizendo da minha torcida para que ele esteja certo. Chego em casa, sem lembrar o nome do meteorologista por ele mencionado, mas lembrando de que há algum tempo li notícias do estudo de uma cientista sobre os ciclos solares e a previsão de que a redução da atividade do Sol levará a uma mini Era Glacial.

É fácil chegar às notícias e ao nome de Valentina Zharkova, assim como à sua advertência de que a previsão de breve período de redução da temperatura não deve ser tomada como uma invalidação da previsão de aquecimento planetário pelo Efeito Estufa, por serem causas concorrentes, de modo que o Sol apenas estaria nos dando um tempo para reduzir a emissão de carbono na atmosfera.

Mas a leitura não me tira do desconforto causado pelo breve debate científico entre o cabeleireiro cético e seu cliente alarmista. Trata-se de um desconforto dobrado: por um lado, a convicção de que a Humanidade pouco se preocupa com o futuro próximo, que poderá ser catastrófico se corretos os do meu time; por outro, minha autoconsciência de leigo ignorante, para quem a convicção no aquecimento global é mais uma questão de crença que de evidência.

Eu, que sempre me considerei cético e que, com a pretensão de herdeiro do iluminismo, apenas confio nas evidências científicas, sinto o desconforto da insegurança, num debate em que sou chamado alarmista, e céticos são os outros, que não veem mal em jogarmos cada vez mais carbono na atmosfera.

Não é a primeira vez que penso nisso e me vejo como se fosse um milenarista, desses que, a partir da leitura do Apocalipse, esperavam para logo o fim dos tempos. Não estaria eu, do mesmo modo que eles, me baseando em leituras sagradas, com a diferença de que na minha versão não há final redentor?

Ao pensar no meu milenarismo, imagino um linque improvável com outro tema que vagamente se apresentou como assunto possível. Nessa minha recente dificuldade em estabelecer sinapses, me agarro à ideia, mesmo imaginando que, ao final, o leitor que se dispuser a tanto estranhará essa mistura de alhos com bugalhos.

O fato é que, imaginando-me abençoado pelos melhores cientistas, penso soluções para a preservação do Planeta e da Humanidade – aqui nova diferença com os milenaristas, porque torço para que o final imaginado não ocorra.

Acredito, por exemplo, que a salvação passa, entre outras coisas, pela significativa redução da população humana e, com ela, a dos animais domésticos, a espécie dominante e algumas poucas espécies escravas, que hoje somam 98% da massa de todos os vertebrados.

Para mim, parece evidente o desequilíbrio ambiental causado pelos bilhões de humanos e animais agregados, mas não ouço governos ou economistas falarem nisso. Também não ouço cientistas insistirem – ou talvez não lhes deem ouvidos –, e isso só reforça a ideia de que sou, mesmo, integrante de uma seita milenarista.

Mesmo assim, na minha teimosia apocalíptica, e pensando que o aquecimento global ou um colapso agrícola nos imponha em breve a terrível necessidade de uma drástica redução populacional, me angustio com o fato de que os princípios éticos até aqui postos pela humanidade de nada nos servirão para essa situação limite para a qual nos dirigimos.

Mas, principalmente, porque vejo nossa sociedade caminhar para uma exclusão social como não se via desde os tempos da Revolução Industrial, e com um conhecimento científico acumulado que permite interferir biologicamente na nossa natureza, a ponto de, por meio da genética, criar as classes dos super-humanos e dos sub-humanos, não considero remota a possibilidade de, como nenhuma outra guerra ou genocídio já ocorridos, acontecer a eliminação de parte significativa da população a partir de um critério econômico-social.

Não vi isso ainda, ao menos de modo ostensivo ou declarado, como uma política em execução, até porque, como economia e ambientalismo não costumam andar de mãos dadas, normalmente os discursos econômicos veem mais problema com a redução da natalidade, que limita o crescimento e cria outros problemas, como, por exemplo, bagunçar as tábuas atuariais, do que com o aumento da população.

Mesmo assim, como penso que um dia o problema será incontornável, me preocupo com o modo como será enfrentado. Sei que as soluções poderão ser diferentes, a depender da urgência. Se ocorrer um desastre repentino, as medidas terão de ser mais radicais; se o problema se manifestar aos poucos, a solução poderá ser menos traumática.

Enquanto a questão não se apresenta ao mundo, ao menos não aos céticos que o governam, sendo imaginada apenas por alarmistas, algumas coisas acontecem intuitivamente, às vezes como política ou ao menos propaganda, às vezes como iniciativas pontuais, muitas vezes de viés higienista. Uma delas, muito clara, é a segregação, que se dá no aprisionamento dos pobres ou no seu deslocamento urbano. Outra, que em alguns momentos já se esboçou, e está sempre à espreita, é a tentação à esterilização forçada. É o pobre, que deixa de ter controle sobre seu corpo, dado o risco de procriação sem controle, intolerável à higiene pública.

É uma tentação que pode refletir uma nova política, a da higiene pública, para a remoção dos sub-humanos, e às vezes parece que os adeptos mais afoitos do pensamento dão vazão a balões de ensaio dessa prática. Claro que são coisas engendradas a partir de um viés distinto daquele da preocupação ambiental: esta se baseia no equilíbrio, aquela na limpeza e remoção.

Provavelmente não pensam na superpopulação do planeta, mas na limpeza da cidade e na remoção de quem pode ameaçar os super-humanos. Só isso explica que, com frequência, quem simpatiza com semelhante solução são os que se opõem visceralmente ao aborto. Como diz Caetano, veem espírito no feto, mas não no marginal.

Por isso, imagino, contra os higienistas, a urgência de programas de governo para desenvolver políticas democráticas de educação e saúde para o planejamento familiar, resultando, em médio prazo, e de um modo emancipador, numa diminuição da natalidade.

Foi o que pensei, com meu milenarismo, nessa semana em que se falou em laqueadura no Brasil e aborto na Argentina. Como o leitor que chegou até aqui pôde constatar, foi mesmo um linque despropositado, em que misturei clima e natalidade.

Mas, ao menos por um dia, resolveu meu jejum de escritas. E, como ando anárquico nos escritos, aproveito a menção à Argentina, que também cancelou o jogo contra Israel em Jerusalém, para confessar que pela primeira vez não a secarei na Copa.

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