A execução de Marielle colocou na nossa pauta a questão do ódio. Não o ódio de quem puxou o gatilho, porque quem mata assim não costuma fazê-lo por ódio, mas pelo cálculo frio do interesse contrariado, da necessidade de manter seu mercado ou garantir sua impunidade.
O ódio de que falo é o dos gatilhos simbólicos puxados aos milhares por sociopatas que vibraram com a morte e a comemoraram nas redes sociais. É o ódio de quem há tempo se livrou de qualquer freio inibitório, para destilar seu veneno contra tudo o que remotamente possa representar inclusão social, cujos defensores acabam, pela repetição, por ser identificados a vagabundos ou criminosos, ou então a aliados de criminosos, como são vistos todos os que se dedicam à defesa dos Direitos Humanos.
Há anos, o preconceito é alimentado com alusões, tão simplistas quanto demagógicas, à defesa de humanos direitos como alternativa aos Direitos Humanos ou ao silêncio sobre a morte de policiais e estardalhaço com a morte de bandidos.
Enquanto postas genericamente, o ódio ao pobre que lhes é subjacente não fica explícito, mas os comentadores de notícias e os compartilhadores de textos agressivos e preconceituosos não se contentam com a generalidade e partem para as agressões mais chulas, as incitações à violência e a comemoração com a morte.
Há muitos diagnósticos sobre tal comportamento, e certamente ele está relacionado a um momento histórico crítico, mais ou menos comum com tantos países, em que o empobrecimento e falta de perspectivas de uma parcela significativa da classe média, seu pânico diante da possibilidade de igualmente cair na pobreza, a levam a abraçar posições fascistas e excludentes.
Há, portanto, um caldo político-econômico, que, ao afetar a confiança das pessoas numa sobrevivência minimamente confortável, permite a eclosão de um ressentimento coletivo, instrumentalizado por quem pode lucrar com esse sentimento.
Assim se gesta o ódio, que acaba por se tornar incontrolável mesmo aos aprendizes de feiticeiro que num primeiro momento dele se beneficiam.
É difícil saber em que medida, uma vez desencadeado um processo histórico, é possível freá-lo. Há quem diga que, se o Judiciário alemão não tivesse sido conivente com Hitler após o putsch de Munique, não teria acontecido a ascensão do nazismo e tudo o que ele produziu. Talvez isso seja verdadeiro, embora na História seja temerário e quase inócuo – só não é inócuo porque podemos extrair lições para situações semelhantes – conjecturar sobre o que não aconteceu.
O fato é que aqui e agora a História está acontecendo. As ostensivas comemorações com a morte de uma lutadora e as caluniosas insinuações sobre seu caráter, como em nenhum momento antes, colocaram em nossa pauta a necessidade de frear o ódio.
Com esse episódio, embora tantos se escondam cinicamente em tergiversações, outros tantos, que em momentos anteriores tacitamente apoiaram esse clima e dele se beneficiaram, agora manifestaram sua contrariedade à conduta.
Talvez em muitos nem seja uma atitude sincera, e, logo passada a comoção, voltem à sua cantilena de alimentar o ódio. Mesmo assim, a imolação de Marielle nos oportuniza um momento, talvez derradeiro, de freá-lo.
E isso exige medidas efetivas de intolerância com os intolerantes. O ódio assim propagado é muito mais grave que a maior parte dos crimes que atrolham nossas prisões de pobres. Mesmo assim, não se veem políticas para coibi-lo.
As instituições precisam punir seus integrantes, quando assim agem; o Ministério Público deve tomar a iniciativa de investigar quem propaga o ódio na internet. Mesmo quando praticados sob o covarde manto do anonimato, são crimes mais transparentes e fáceis de identificar que aqueles comumente descritos nas denúncias.
O momento é agora. Talvez seja esperar demais de quem está acostumado à persecução criminal dos pobres, principalmente porque mudaria o perfil social dos réus e em alguns casos talvez chegasse perto das próprias instituições, o que sempre torna as coisas mais difíceis. Mas há uma responsabilidade social e há um momento histórico. Há modos de coibir o ódio, e um deles passa por dar prioridade ao seu combate e à punição de quem o pratica publicamente.
Marielle merece e a sociedade brasileira necessita disso, antes que seja tarde.
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