Continua a discussão sobre a audiência de custódia, e inúmeros juízes resistem a sua implantação. Há uma explicação evidente para isso: é um trabalho a mais, e ninguém gosta de ter imposta mais uma tarefa, notadamente quando, como acontece com a maioria dos juízes, o volume de trabalho já é elevado.
Mas este não é, certamente, o único motivo, porque, houvesse a compreensão de que sua realização é importante, certamente ninguém se oporia a ela.
E aí é que vem o lado mais preocupante da resistência: um número demasiadamente grande de juízes considera que a audiência de custódia não serve para nada ou, pior ainda, não é para o bem.
Tento compor o imaginário subjacente a semelhantes posições, quando penso que as finalidades precípuas da audiência são a rápida concessão da liberdade, quando a prisão é ilegal ou não há necessidade de mantê-la, ou então a apuração de abuso ou violência policial.
Não tenho dúvida de que a discussão sobre a aplicabilidade da Convenção Interamericana de Direitos Humanos ou sobre a constitucionalidade da exigência de sua realização são, na verdade, pretextos de quem é contra a apresentação do preso, e a contrariedade reside nesse outro lugar preocupante.
Mas, que lugar é esse de quem não vê utilidade na audiência de custódia? Será o de quem acredita que uma passada de olhos no auto da prisão em flagrante é suficiente para exercer seu papel? Será o de quem não acredita que a polícia bate? Será o de quem sabe que ela bate, mas acha que sempre usa apenas os meios de força necessários? Ou que são efeitos colaterais inevitáveis? Ou então que é triste que isso aconteça, mas não é papel do magistrado se preocupar com essas coisas? E quantos magistrados há que cultivam secretamente – é lamentável, mas alguns não tão secretamente – a ideia de que o preso é por definição bandido e que bandido tem que apanhar mesmo?
Se isso acontece, é porque não existe uma cultura de direitos humanos entre a magistratura e o juiz não se vê como guardião de sua defesa. Aliás, direitos humanos é expressão que faz parte de um léxico de palavras estigmatizadas, jargão do discurso impertinente de uns chatos esquerdistas, que adoram defender bandidos.
Para quem assim pensa, a vida deve seguir como está, a polícia militar seguirá batendo sistematicamente, mas nós não temos nada a ver com isso. O Estado policial age embaixo do nosso nariz – aliás, os juízes somos parte desse Estado – e fazemos de conta que não é conosco.
Por isso, quando lembro de todas essas coisas, penso que talvez a audiência de custódia venha a ter um outro efeito muito benéfico, o de abrir os olhos dos juízes.
Ter olhos para, esta é a questão.
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Sobre ter olhos, e sobre como as coisas funcionam na prisão em flagrante, transcrevo parte de ofício que encaminhei à Corregedoria Geral de Justiça em 2008, quando era juiz plantonista e ainda não se cogitava da audiência de custódia (a íntegra está em Audiência de custódia e violência policial):
“(…) há todo um aparato estatal que tende a legitimar os excessos e violências de seus agentes policiais.
Esse aparato, que inicia na Delegacia onde é lavrado o flagrante, segue todo um iter, do qual não se exclui o Judiciário. Na Delegacia é lavrado o auto da prisão em flagrante sem que a autoridade policial ao menos cogite de que possa ter havido algum ilícito por parte dos policiais que efetuaram a prisão. Nesse meu já longo período de Plantão, nenhuma vez aconteceu, embora seja dever de ofício, que o delegado que preside a lavratura tenha tomado qualquer medida para investigar abuso de autoridade. Note-se que isso não lhe seria difícil, porque, se, à distância, movido apenas pela leitura atenta do auto, confirmei a violência na totalidade das apresentações de presos que determinei, a percepção ao vivo dos relatos trazidos e das condições físicas dos conduzidos muito melhor e em número muito maior de casos poderia indicar o provável ilícito dos agentes estatais.
(…)
Mas, retornando ao iter a que me referia, e justificando a digressão acerca da reunião com delegados, lembro que ali um deles disse ser desnecessária a apresentação ao juiz porque os presos eram sempre submetidos ao exame de lesão corporal. Ora, na atual sistemática tal exame é absolutamente inócuo, e sua única finalidade é saber se as lesões sofridas são anteriores ou posteriores ao ingresso no presídio – a rigor, até nisso é inócuo, porque, como ninguém se preocupa com as lesões sofridas pelos presos, essa precaução da autoridade penitenciária acaba por configurar excesso de zelo.
Assim ocorre porque o auto da prisão em flagrante e o inquérito policial correspondente têm uma finalidade clara: a de elucidar o crime atribuído ao conduzido, e, por isso, qualquer registro sobre abuso de que tenha sido vítima não corresponderá a mais que um relato lateral sobre fato estranho à finalidade da peça.
Tome-se isso, mais uma sistemática de trabalho que levará o promotor a se ater àquelas peças que sirvam à finalidade de oferecer denúncia contra o acusado ou mesmo, eventualmente, requerer o arquivamento do inquérito, e ao juiz receber ou não a denúncia ou promover o arquivamento, e as queixas do acusado, bem como suas lesões, apuradas no laudo, para as quais os operadores jurídicos estão tão anestesiados quanto a própria sociedade, passarão sempre despercebidas.
Assim, nem delegado, nem promotor, nem juiz têm olhos para o abuso de autoridade; o iter, que inicia na prisão em flagrante, prossegue na lavratura do flagrante e sua homologação, depois no inquérito policial, no oferecimento e recebimento da denúncia e depois no processamento do acusado, não prevê o controle da violência policial. O único momento em que isso pode razoavelmente ocorrer é na apreciação do flagrante, desde que o juiz não esteja igualmente anestesiado para esse problema.”
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