Assumi: sou politicamente correto

Associada Jenifer, favor dirigir-se ao caixa 5. Ouvi isso no alto-falante das Lojas Americanas, era 80 e tantos ou 90 e poucos. Evidentemente, Jenifer não era diretora da empresa. A associada – ou colaboradora, como também se usava – não ganhava um centavo a mais por ser chamada assim, e continuava tão mal remunerada como quando era simplesmente empregada.

A linguagem politicamente correta virou moda, e logo negro já não era negro, para tornar-se afrodescendente, favela virou comunidade e uma sucessão de outras palavras foi adotada para designar de modo mais suave as coisas que carregavam algum tipo de estigma ou conflito, como se a mudança léxica fosse suficiente para superar o problema.

Evidentemente, nem afrodescendentes ou povos nativos acabou com o racismo, nem associados ou colaboradores acabou com os conflitos trabalhistas, nem qualquer outra das novas expressões acabou com os conflitos que se tentavam mascarar. Na verdade, a linguagem politicamente correta era apenas um modo canhestro de suavizar com palavras o que não era suavizado com atos; pelo contrário, nem ao menos correspondia a um efetivo esforço em fazê-lo.

Talvez eu já soubesse disso antes de Jenifer ser chamada ao caixa 5, talvez tenha me dado conta naquele momento, mas para sempre me declarei inimigo do politicamente correto.

Ao longo desses anos, me mantive firme nessa visão, e torcia o nariz sempre que alguém falava em politicamente correto, sem me dar conta de que algo havia mudado. Ou foi sempre assim, e eu é que não percebi.

Senti isso depois que inadvertidamente me incluíram num grupo de Facebook que mais parece da Ku Klux Klan, e, ao ler as postagens de alguns dos raivosos mais assíduos, percebi o quanto escarneciam do politicamente correto. Pensei: alguma coisa não está fechando, ou eu estou errado ou eles estão.

Fui pesquisar e descobri. Aliás, devo ter andado em Marte nos últimos anos, por não ter me dado conta do que acontecia, mas uma pesquisinha básica no Google me esclareceu de tudo.

Logo cheguei a um documentário compartilhado por um notório direitista da praça. Trata-se de um filme de pouco mais de vinte minutos do Free Congress Foudation, uma dessas associações da direita americana, que responsabiliza Gramsci e Luckács pela origem do politicamente correto e a Escola de Frankfurt por seu desenvolvimento, que teria chegado ao ponto máximo com Marcuse. Fundamentalmente, o politicamente correto corresponderia a uma nova linha de atuação do marxismo, o qual, tendo percebido que a classe trabalhadora, beneficiária da prosperidade do capitalismo, já não se dispunha a fazer a revolução, concluiu que era necessário fazer a revolução por meio da destruição da cultura ocidental. Nessa mudança do campo de luta da economia para a cultura, teria optado por apostar em grupos vitimizados, como mulheres, negros e gays, voltando-se posteriormente também para a questão ambiental.

O filme está a um passo de sugerir que a defesa dos direitos das mulheres, dos negros, dos gays e a defesa do meio ambiente nada mais são que uma insidiosa campanha marxista para dominar o mundo.

Ali entendi tudo, e uma leitura rápida do verbete na Wikipedia validou a descoberta.

Mas, não creio que, embora esse tipo de explicação esteja hoje em alta, num mundo em que a direita caricatural perdeu a vergonha e no qual cada vez mais parece faltar inteligência para posturas minimamente críticas, as referências jocosas ao politicamente correto se baseiem numa crítica ideológica ao seu caráter supostamente marxista.

É claro que a tentativa de ridicularização surge a partir de uma postura conservadora (direitista talvez seja a melhor palavra), mas o que parece presente nos discursos que vi tem algo de ocultamento, em que os autores do deboche não aparecem ocupando um lugar ideológico; pelo contrário, quase se apresentam como quem faz crítica de moda ou comentários estéticos.

Há nisso uma inversão: se aquela linguagem politicamente correta, que trocava negro por afrodescendente ou empregado por associado, tinha a ilusão de ocultar o racismo ou o conflito de classes trocando o nome das coisas, e nisso se tornava chata, agora se diz chato, por politicamente correto, quem preserva o nome das coisas.

Evidentemente, lá no fundo, esses detratores do politicamente correto resistem às bandeiras de igualdade baseada no sexo, na orientação sexual, na defesa do meio-ambiente, mas isso não pode ser dito, afinal, é necessário preservar um certo verniz e não admitir que se é troglodita.

Então, a fórmula é esta: ridicularizar os politicamente corretos, aqueles chatos de discurso monocórdio, repetitivos em suas falas inclusivas, que irritantemente teimam em reivindicar igualdade de tratamento e igualdade de oportunidades, quando não postulam audaciosamente a reparação de dívidas históricas.

A ridicularização cumpre bem esse papel: o discurso politicamente incorreto, ou de detração do politicamente correto, não é o discurso de reacionários; é apenas um discurso contra a chatice. Não é fruto de reacionarismo, é quase uma declaração estética de quem está cansado dessas conversas, como quem cansa de uma música ou de uma cor, e trata os politicamente corretos como trataria quem insiste em cantar a música chata ou vestir a cor que saiu de moda.

Desse modo, a rejeição ao politicamente correto não se põe no âmbito de uma resistência conservadora a pleitos de igualdade, mas de impaciência com um discurso chato, que já não se aguenta ouvir.

Claro, se olharmos os perfis de quem assim se manifesta, perceberemos toda uma carga de preconceito e reacionarismo, tão intensa que chega a doer, mas isso não interessa, porque a direita perdeu a vergonha, as pessoas perderam a vergonha de serem assim preconceituosas.

Mas, são coisas diferentes: uma é serem assim, outra é o modo como externam seu preconceito, e, para sua autoimagem e sua pobre autoconsciência, sempre é melhor que se sintam reagindo aos chatos do que mostrando todo seu reacionarismo.

Assim são as coisas: por muito tempo me senti politicamente incorreto, porque me opunha à empulhação feita por meio de um linguajar chato, que se dizia politicamente correto para mascarar as desigualdades e discriminações; agora, percebo que a alegada chatice do politicamente correto serve como máscara para os reacionários que se opõem à superação das desigualdades e discriminações.

Chato não é Jenifer ser chamada de associada, chato é Jenifer achar que, como mulher ou empregada, deve lutar por seus direitos.

Por isso, só tive uma saída: virei politicamente correto e assumi minha chatice.

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