Tenho arrependimentos. Botei na cadeia gente que não devia.
Havia um servente de pedreiro, conhecido por cometer pequenos furtos. Sumiram tijolos numa obra em que ele trabalhava. Eu, juiz em início de carreira me impressionei com depoimentos que o apontavam como culpado, sem que houvesse uma prova conclusiva.
Também condenei por estupro um rapaz soturno, que todos diziam sério, baseado nas palavras da vítima, quando havia depoimentos que no mínimo colocavam em dúvida a veracidade das acusações.
Me arrependo dessas condenações, e meu alívio é que o Tribunal de Justiça reformou as sentenças e absolveu os réus.
Mas não me sinto aliviado de uma condenação por atentado violento ao pudor. O réu foi acusado de bolinar um menino de dez anos. Quando penso, sei que a prova não era boa, mas estava convencido, fundamentei bem e o Tribunal confirmou. Se tivesse absolvido, provavelmente não me lembraria do caso, mas condenei. E me arrependi. O condenado era um rapaz trabalhador, sem nenhuma condenação, e eu o condenei sem ter certeza.
Nunca esquecerei desses casos. Na hora de julgar, estava convicto; tempos depois, a convicção virou fumaça. Se pudesse voltar no tempo, decidiria diferente, mas ninguém volta no tempo. Por isso, sou eu que não me absolvo por ter tirado a liberdade. É uma culpa imprescritível.
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O tempo passou, segui juiz, me dedico à profissão, sempre tento acertar, mas sei que não existe garantia para isso.
Sou juiz do Cível, se errar, provavelmente alguém perderá dinheiro ou algum bem. Se meus colegas de uma Vara de Família errarem, a consequência será maior, assim como será na Vara da Infância. E também numa Vara Criminal.
Sou feliz: não estou na pele dos juízes que assim precisam decidir. Não corro o risco que eles correm e não mais me arrependerei por decisões dadas com uma convicção que se esboroa depois de noites mal dormidas.
Mas carrego arrependimentos de duas décadas.
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Outros juízes tomaram decisões – certas ou erradas – com consequências piores.
Lembro do rapaz que foi preso por ameaçar a mulher. Nem existia ainda a Maria da Penha. Ameaça não é crime grave, e ninguém pode ficar preso por isso. Ele foi solto, decisão óbvia. Foi solto e matou a mulher.
Lembro de outro, preso em flagrante por estuprar uma criança. Sofreu sevícias infindáveis na cadeia e amanheceu morto. Dias depois, foi preso o autor do fato.
Há decisões certas, há decisões erradas. Há decisões erradas que não resultam em consequências e decisões certas que terminam em tragédias. E quem dirá certa ou errada a decisão? O Tribunal mudou duas das minhas decisões, mas não mudou a terceira, essa de que mais me arrependo, justamente porque ninguém a mudou.
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Felizmente, o Direito não é dito por um computador, mas por pessoas humanas, com diferentes percepções da realidade e diferentes concepções sobre o Direito em si. Se tudo fosse simples, e houvesse uma única decisão possível, não precisaria haver juiz; se houvesse juiz, não precisaria haver Tribunal; e, havendo Tribunal, todas as suas decisões seriam unânimes e confirmariam a mesma que o juiz já tomou.
Mas não é assim. Não só o Direito é interpretado de diferentes maneiras e os fatos são percebidos de diferentes formas, como, por sermos humanos, estamos sujeitos a erros.
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Juízes prendem muito. Uns prendem mais, outros menos, mas prendem muito. Há mil motivos para uns prenderem mais e outros menos. O certo é que prendem cada vez mais. O número de presos no Brasil é hoje o triplo do que era no ano 2000. Somos o terceiro país com mais presos no mundo. No Rio Grande do Sul, em menos de dois anos, o número aumentou em mais de 5 mil.
Por que os juízes prendem muito? Porque a criminalidade é cada vez maior, porque as leis penais são cada vez mais severas, porque a polícia prende mais e o Ministério Público oferece mais denúncias.
Nos próximos anos, vão prender mais ainda. E não haverá mais lugar nas cadeias (na verdade há muito não há, e lá, nessa universidade do crime, os presos vivem entulhados). Mesmo assim, a criminalidade continuará a aumentar, e seguiremos com medo. Cada vez mais medo.
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Quando ocorre um latrocínio em que a vítima é uma pessoa como você, que faz as mesmas coisas que você faz – por exemplo, levar o filho para a escola –, você fica perplexo, consternado. Poderia ter sido com você. Seu medo aumenta. Seu sentimento de desproteção se torna infinito. Aumenta também o desejo de punição.
Se alguém lhe diz que um dos assaltantes, ainda que não seja quem deu o tiro, foi solto há pouco, você não compreende e culpa o juiz. Seu sentimento de justiça lhe diz isso, e provavelmente você acabe concordando que a culpa da criminalidade é dos juízes que soltam. Mesmo que os juízes prendam cada vez mais.
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Nesse sentimento de desamparo, você talvez aplauda os que clamam por vingança, os que querem sangue, linchamentos, pena de morte, execuções.
Eu lhe peço: não faça isso. Não siga os fascistas que crescem sob o olhar cúmplice das suas instituições, não siga os justiceiros que usam o rádio para semear o ódio. Eles chocam o ovo da serpente, abrem a caixa de pandora.
Compreendo sua perplexidade, mas não siga essa cantilena. O dia em que esse discurso vencer será o dia em que a própria civilização se renderá ao discurso de ódio, e ninguém mais estará livre dele.
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Eu me arrependo em silêncio, acusado só por minha consciência. Ninguém mais me acusou. Ninguém me acusou porque ninguém vê a prisão injusta. Prender por engano não causa clamor popular. Também não causa indignação. As pessoas que prendi não merecem nossa simpatia, ninguém se compadece delas. E nunca as encontraremos nos lugares que frequentamos.
Se nós, juízes, que cada vez mais prendemos, prendermos mal, não seremos acusados por ninguém. Não haverá quem defenda esses pobres-diabos, que não são do nosso mundo e cuja liberdade não nos faz a mínima diferença.
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No entanto, me arrependo.
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(Escrevo este texto em solidariedade às juízas que hoje são vítimas dos fascistas.)
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