Voltei a uma vara de família, a mesma de onde saí há quatro anos.
Foram três semanas e dezenas de audiências, principalmente em ações de alimentos.
No início pensei: quatro anos, e nada mudou.
Passaram os dias, e passei a perceber diferenças. Nada estatístico, tudo sentir. Talvez um sentir alimentado por uma memória falha, empenhada em confirmar o que tenho pensado. Mesmo assim, um sentir, que compartilharei com a advertência sobre a possibilidade de falsas lembranças.
Primeiro, cheguei à conclusão de que os pais estão mais presentes. Poucas – bem menos que anos atrás – foram as situações em que o pai externava sentimento de indiferença ou rejeição.
Terá minha conclusão sido resultado ilusório de uma amostra insuficiente? Conclusão distorcida por meu desejo de ver esta participação? Ou terá mesmo havido, em tão curto tempo, tal mudança no comportamento masculino?
Neste último caso, o que pode ter motivado a rápida mudança? Me pus a pensar hipóteses, que, de tão inconsistentes, não merecem ser mencionadas, exceto uma delas, que me pareceu bastante plausível, porque diz respeito à segunda diferença que pensei ter sentido. Esta segunda diferença é o empobrecimento, e foi numa possível solidariedade nascida da miséria que imaginei nascer uma maior presença masculina.
Não é fácil enxergar empobrecimento lá onde sempre transitou a pobreza: perceber um pobre enriquecer ou um rico empobrecer é tão fácil quanto raro, mas perceber o empobrecimento de quem já é pobre exige apurar deslocamentos sutis, que não aparecem ao observador distraído.
Talvez minha atenção tenha sido despertada pela ordem em que se fixavam os percentuais de contribuição. Explico para quem não é do ramo. No acordo ou na sentença – houve quase só acordos, mais um indício de maior presença masculina –, há uma redação alternativa de cautela, para evitar que, em havendo mudança na situação do alimentante, se percam os parâmetros: os alimentos são fixados em um percentual sobre o salário líquido, sendo desde logo previsto, para a hipótese de deixar de existir vínculo empregatício, um percentual sobre o salário-mínimo.
Pois essa ordem foi invertida. Há quatro anos, o mais comum era discutir-se um percentual sobre o salário, e para isso o alimentante exibia sua carteira do trabalho ou contracheque; nessas três semanas, raras foram as carteiras do trabalho, raros foram os contracheques, e os acordos se davam com a inversão do enunciado: primeiro se discutia um percentual sobre o salário-mínimo, e depois vinha a pergunta: e se o senhor se empregar?
Seja pela crise econômica, seja pelo desmonte da legislação trabalhista, a maior parte dos pais – e também das mães – virou empreendedor: biscateiro, jardineiro, pintor ou mesmo profissional polivalente, que oferece qualquer tipo de serviço para conseguir um trocado. Havia também, mas não foi trazido pela Susepe, um pai que foi preso com uns poucos papelotes de cocaína, e por isso parou de ajudar o filho de três anos.
O mais bem sucedido desses empreendedores era um motorista de Uber, que trabalha sete dias por semana das quatro às quatro (depois pega na escolinha a filha para a qual paga alimentos), e tira por mês aproximadamente quatro mil, dos quais parte considerável vai para a gasolina e manutenção e seiscentos vão para o aluguel do veículo, pago a outra empreendedora, que montou uma frota de dois carros, adquiridos após ser demitida: deu como entrada a verba rescisória e assumiu prestação pouca coisa inferior ao aluguel que cobra.
Outros havia numa situação intermediária entre a formalidade e a informalidade: vários cooperativados, que recolhem o lixo da cidade ou capinam suas praças, ou o pai ainda adolescente, jovem aprendiz que compareceu assistido por seu próprio pai e insistiu para ver com mais frequência sua filha.
Incluo nesse grupo um dos poucos homens que não demonstraram disposição para ver seus filhos: recebe valor fixo diário de seu patrão, fabricante de rapaduras, que vende numa rodovia, e não pode perder um dos trinta dias do mês, porque aí não terá dinheiro para pagar os alimentos da filha. Não adiantou eu dizer que se tratava de trabalho escravo: era isso ou nada.
Havia também os empregados formais, como o pai de 21 anos, que declarou estar muito bem no Zaffari, onde recebe mil e cem, e não titubeou em oferecer 30% para a filha.
A propósito, em mais de uma audiência ouvi que mil e cem era muito, e mentalmente tracei a fronteira entre receber bem e receber mal. Isso ficou mais claro na audiência em que o pai, que trabalha na Cootravipa e tira mil, disse que a mãe, que recebe mil e cem numa cafeteria, ganha bem. A resposta da mãe foi que paga quatrocentos de transporte escolar e quatrocentos para a escolinha da filha autista, com a qual ainda desembolsa cinquenta em medicamentos, que os governos desses tempos sombrios já não entregam.
Classe média? Um ou outro. Lembro do policial civil com salário atrasado e da professora universitária de meia idade, que a cada semestre tem menos cadeiras, a ponto de seu salário estar hoje abaixo dos mil e cem do rapaz do Zaffari.
Audiências houve em que o acordo saiu fácil, bem mais fácil do que essas condições me faziam supor. Em outras, a longa discussão apenas escancarava o milagre diário necessário para manter a dignidade desses pais e mães e dos filhos que sustentam.
E foi inevitável o pensamento, no meio de uma tarde de onze audiências, em que tentava contribuir da melhor maneira para buscar recursos lá onde quase nada havia: como posso manter, audiência após audiência, a serenidade neste lugar de desespero, quando penso no abismo entre o meu salário e os das partes que estão na minha frente? E o pensamento foi num crescendo, até eu concluir, extenuado, ao final das audiências, que a soma dos salários dos homens e mulheres que atendi naquele dia não chegava ao meu.
Este era o abismo, o abismo entre meu salário e o deles, mas principalmente o abismo para o qual os pobres estão sendo jogados, enquanto fazemos de conta que tudo continua normal.
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A ilustração é de Portinari, Menino sentado.
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