As ruas de Porto Alegre me fazem Quintana. Quando, fato raro, passo por elas distraído, descubro novos ângulos, cores não vistas e penso Quintana. Abro, como ele, o mapa e me sinto um anatomista. Quando por elas transito, me penso nesse estranho sistema circulatório da cidade, onde não há artérias, só veias que carregam gás carbônico.
Como Quintana, sinto dor pelas ruas onde jamais passarei. Quando passo por onde não passei, sou de novo Quintana. Agora conheci a Saldanha Marinho, lá no Menino Deus. Por que, em tantos anos, não busquei a Saldanha Marinho? Saudei a Saldanha, sorri para ela. Não vi, na pressa automobilística, se há nela moças bonitas, mas penso ter visto uma calçada de mesas boêmias.
Colei a Saldanha Marinho no álbum imaginário das ruas de Porto Alegre, mais uma figurinha para o menino que me habita. Quase digo que eu passarinho.
Assim vou preenchendo meu álbum, um dia na Nossa Senhora da Boa Viagem, lá da Pintada, outro na Estrada dos Alpes, e não sei como sair na Oscar Pereira. Há também as sem nome, como certas árvores da primavera que as habitam e dão flores sem RG, porque nenhum botânico me socorre. Falando em primavera, quem conhece a Setembrina? Com certeza, as pessoas passam por ela sem lhe darem bom dia, porque ninguém nunca as apresentou à Setembrina.
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Sempre pensei as ruas de Porto Alegre imagem, nunca as pensei som. Claro, se chamo a memória e volto décadas, os sons renascem. Ouço as roupas pobres apregoadas na Voluntários, ouço bater nos edifícios o eco dos carros que sobem a Borges vindos do Mercado, ouço gurizada medonha na Rua da Praia, e lá adiante, na José Montaury, o mendigo que cheira éter e repete me dá.
Mas eram as ruas do centro, não tenho uma memória auditiva das outras, nem das minhas ruas pedestres de periferia de outrora, nem, se abstraio os roncos e buzinas nervosos e impessoais, das avenidas automobilísticas de hoje.
As ruas nunca conversaram comigo, não as imaginei com voz. Ulysses ouviu sua voz num momento especial da História, e minhas próprias cordas vocais devem ter se somado a milhões de outras para que ela fosse ouvida, mas penso que foi uma voz uníssona, de todas as ruas, como não se ouviu mais.
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Pensei nisso ao lembrar como este ano evocou a voz das ruas. Dizem que precisamos ouvi-las. Tento apurar meus ouvidos, já não como anatomista, mas otorrino. Vou auscultá-las, ouvir suas mensagens.
De que rua falam? São tantas as de minha Porto Alegre, e as imagino conversar entre si. Algumas são diligentes e pronunciam a voz do trabalho, outras, com sono, silenciam. Existem as ruas alegres, que vibram, as tristes, que choram, há as revoltadas, as loucas, as subversivas.
Mas essas vozes que agora imagino são isso: vozes imaginadas, porque só as penso falar, não as ouço.
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Mas entendo o que se diz. Quem diz voz das ruas não diz voz de todas as ruas, diz a voz de poucas, porque são poucas as que se fazem ouvir. Lá onde se fala voz das ruas, o intervalo auditivo é estreito, e os decibéis precisam estar bem ajustados para serem ouvidos.
Ah, como eu queria que mais ruas soubessem gritar no mesmo tom, para se fazerem ouvir. Mas, não, as outras ruas não sabem ser como a Goethe. Não se pense que no entorno da Praça da Matriz as ruas se farão ouvir. Não, esta voz não ressoa, é até mesmo calada com bombas.
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Quintana não falou da voz das ruas, falou de seus próprios passos inaudíveis na ruazinha. Na sua rua, o vento dormia na calçada e as estrelinhas cantavam como grilos. Quintana era poeta, as vozes que ele ouvia vinham como sussurros.
Bela cidade, a de Quintana, das ruas a serem descobertas. Ruas irmãs, que, sem falarem, não eram mudas, não eram caladas, nem ignoradas.
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A foto é de Guilherme Santos, do Sul 21 .
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