Minha relação com o Direito Penal é mínima: tive pouquíssimos processos como advogado e só jurisdicionei no início da carreira de juiz, com um intervalo, entre 2006 e 2008, quando fui juiz do Plantão. Mas foi um intervalo peculiar: embora a maior parte da jurisdição do Plantão fosse criminal, tratava da porta de entrada, ou da pré-entrada. Caíam ali as quebras de sigilo, as interceptações telefônicas, prisões temporárias, buscas e apreensões, marias da penha e, no que aqui interessa, os flagrantes. Foram três anos de muitos flagrantes.
Desde os primeiros, identifiquei duas marcas que nestes anos me aguçavam os sentidos. A primeira era o uso da força moderada. Quando aparecia isso no flagrante, eu pensava, e não errava: este cara apanhou. Não vou entrar em detalhes, mas deixo claro, antes que alguém interprete assim, que essa minha negativa em ser ingênuo diante da ação policial não me levava a uma ingenuidade romântica em relação ao preso: muitas vezes a prisão ocorre em situação de conflito e resistência, e por isso o uso moderado da força é quase constitutivo de uma prisão em que há resistência. Mas, por ser constitutivo, não havia a necessidade de sua inserção nas declarações do condutor; se era dito, o era como justificativa para as lesões do conduzido. Então, era isso, este cara apanhou.
A outra marca é a que aqui me interessa: após prisão ocorrida no interior de residência, em flagrante por posse de droga ou de armas, o policial, que lá havia entrado sem mandado, quando não dizia foi em perseguição, afirmava que o morador havia consentido no ingresso. E eu pensava: mentira. Aliás, não sei o que mais me irritava: se era a ilegalidade em si ou o fato de o policial me tirar para bobo, ao imaginar que eu acreditaria na versão de que o morador pacificamente autorizara o ingresso em sua casa, para em seguida, diante da apreensão, ser preso.
Mas o pior é que o policial não me tirava para bobo: sua fala fazia parte de um script em que eu também deveria ser ator. Na verdade, independentemente do modo como ele havia entrado nesse domicílio, havia um resultado que o redimia de qualquer ilegalidade: um crime permanente. Está lá no artigo 5º, inciso XII, da Constituição: a casa é asilo inviolável, mas é lícito ingressar nela sem consentimento do morador se lá estiver ocorrendo crime.
Ou seja, o consentimento do morador ou a perseguição ou qualquer outro argumento eram absolutamente secundários diante do resultado. Na verdade, eram detalhes convenientes ao relato, porque ficaria mal dizer que lá entraram só porque um informante passou um dado ou porque se desconfiava do morador. Mas não deixavam de ser detalhes, porque havia um resultado, e este resolvia tudo. Resolvia tudo, inclusive para o juiz, para quem força moderada ou consentimento do morador deveriam ser marcas irrelevantes – não marcas – diante do fim alcançado.
Mas, só um momentinho, vamos deixar o policial de lado, vamos falar do juiz. Ou, de modo mais genérico, do Judiciário.
Não vou nem falar de valores, e dizer que a inviolabilidade de domicílio é muito mais importante que qualquer arma ou droga que venha a ser apreendida, porque a própria Constituição abre a exceção para o crime permanente; vou falar mesmo de como essa nossa ratificação, digna da velhinha de Taubaté, legitimou ao longo dos anos uma prática criminosa da polícia – por dever de justiça, assinalo que não vi isso acontecer com a polícia civil.
A coisa é muito simples: seja por investigação, seja por colaboração de informantes, seja por perseguição, seja por intuição, seja pelo que for, se consagra a prática absolutamente criminosa de invadir casas sem mandado de busca e apreensão. Ocorre que ninguém pode ter certeza prévia de que lá naquela casa está acontecendo um crime (entrar na casa para procurar droga ou arma é diferente de entrar se lá está acontecendo uma agressão, que pode ser vista ou ouvida da rua). Então, o que acontece é uma aposta: a de que lá vai ser encontrada uma arma ou droga. Encontrada, está resolvida a questão, o processo vem ao juiz e ele, com a melhor das consciências, condena o réu, legitimando a ação policial, porque se tratava de crime permanente.
Mas havia uma coisa evidente aí, que não aparecia nas sentenças, que não aparecia nos acórdãos, aliás, da qual não ficávamos sabendo, mas que tínhamos a obrigação de pensar: se a ação começava ilegal e se legitimava pelo resultado, o que acontecia com aquelas ações que não alcançavam o resultado legitimador?
Pergunto: alguém alguma vez viu um processo contra policiais por violação de domicílio? Por que não existem? Posso responder. Porque o morador não vai ter fé ou coragem para registrar ocorrência; se tiver, isso nunca passará de um BO; se passar, não se colherão provas no inquérito; se chegar ao Ministério Público, vai pedir o arquivamento; em dependendo de representação, a própria vítima terá mudado de ideia, seja pela ação do tempo, seja por argumentos muito convincentes, que lhe foram dados pelos acusados e seus colegas (ouvi isso: vai ficar mal pra mim doutor); se o processo andar, não haverá testemunhas com coragem para depor. Esse “se” pode seguir ao infinito, e a questão é muito clara: não há controle nem punição para a invasão de casas na periferia.
Então, eis as duas faces da moeda: a ação que nasce ilegal bifurca em dois finais possíveis: um primeiro, em que, realizada a apreensão e a prisão, o resultado redentor a legitima, e o juiz diz “crime permanente, condeno o réu”; um segundo, em que nada é achado, e o juiz não diz nada, porque não fica sabendo. Só deveria saber que, cada vez que justifica a ação pelo resultado que produziu, justifica igualmente a ação que produziu o resultado, porque a prática sobrevive da legitimação que lhe é dada. Por isso, cada vez que condena um réu em semelhante ação, o juiz passa uma mensagem tácita à polícia: continuem agindo assim, vocês não precisam de mandado.
E dê-lhe pedalada.
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Escrevo este texto porque me senti interpelado pelo Sidinei Brzuska, que ontem me mandou mensagem pedindo aquele artigo que falava de inviolabilidade de domicílio. Li sua postagem no Facebook, na qual diz que a justiça vem absolvendo sumariamente os réus acusados de guarda de armas ou drogas, quando a apreensão ocorreu dentro da residência, sem a existência de prévio mandado judicial de busca a apreensão. Eu não sabia e fico feliz. Como andei refletindo – e escrevendo – sobre esperança, tenho nisso mais um motivo para acreditar que conseguimos melhorar as coisas.
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