O título deste texto poderia ser também, por motivos óbvios, Diretas e indiretas. Poderia ser ainda, por motivos que explicarei, Matemática pura ou, por extensão, Direito puro.
Como não sou matemático, posso me permitir licenças retóricas, para dizer que a matemática pura, também conhecida por matemática estética, é aquela que não serve para outra coisa, que se basta a si própria. Sei que exagero, e de vez em quando são encontradas aplicações para ela, mas é mais ou menos como uma matemática autista, em que as pessoas calculam, calculam, calculam, e não veem pela janela que o mundo gira lá fora.
Foi mais ou menos o que pensei quando algumas pessoas criticaram a proposta de eleições diretas como solução para a vacância do cargo de presidente, sob o argumento de defesa das regras democráticas, porque diretas seriam mais uma agressão à tão sofrida ordem constitucional, ontem atingida por quem deu o golpe, e agora paradoxalmente ameaçada por essa proposta de quem a ele resiste.
Pensei isso: estão calculando, calculando, calculando, no seu Direito puro, e não veem pela janela que o mundo gira lá fora.
Claro, esta crítica é difícil, porque sempre poderá vir deles a acusação de que quem defende as diretas é um defensor de ocasião da Constituição: defende quando serve, não defende quando não serve.
O grande problema é que, no seu Direito puro, veem o golpe como um episódio do passado, exaurido com o afastamento definitivo da presidente eleita. Não o percebem como uma janela, que vai pelo menos até 2018, em que todas as maldades do mundo podem ser cometidas num quadro de instrumentalização do golpe, de exaurimento dos seus efeitos.
Não veem que nesse tempo os que de modo espúrio tomaram o poder estão desfigurando a própria Constituição e que arredar do poder o atual presidente e depois eleger outro com eleições indiretas é um dos modos de aprovar todas as medidas que não conseguiram ser aprovadas na normalidade democrática.
Não percebem que esta janela de oportunidades, propiciada por um Congresso de parlamentares eleitos em campanhas milionárias financiadas por corruptores que viraram delatores, mas ainda assim se beneficiarão das reformas em votação, é nada mais que a janela do golpe.
Não percebem que o golpe não acabou e que as eleições indiretas que se articulam estão postas nesse contexto em que o Congresso que assim se elegeu e depois destituiu sem fundamento a presidente votará um presidente comprometido com o programa do golpe, na pressa por realizar até 2018 tudo o que nele foi prometido.
Assim, o casuísmo de se proporem diretas agora nada mais é que a resistência a um golpe ainda em andamento, que a cada dia se esforça por produzir seus efeitos programáticos. Por isso, o casuísmo de alterar a Constituição para antecipar as eleições diretas é o casuísmo de enfrentar o golpe.
Mas isso precisa ser percebido, e não o será por meras equações matemáticas, de um Direito puro que não compreende o que ocorre à sua volta.
É uma questão de ler a realidade, e nesse ponto importa também dizer que eleições diretas são, ao contrário do que pensam, uma opção pelo retorno à normalidade constitucional, que continua quebrada.
Não são, certamente, a única opção. Não haveria, por exemplo, problema numa eleição indireta que fosse fruto de um grande acordo, com o compromisso de construir as condições para o retorno à normalidade democrática nas eleições em 2018, uma eleição com o compromisso de não avançar nas reformas apresentadas nessa janela de oportunidades.
Nesse ponto, é melhor não ser purista, porque é preferível superar o quadro político de polarização que realimenta a fratura social.
Mas, para isso, deveria haver um acordo mínimo entre os atores políticos, dispostos a um compromisso que não parece existir, porque o projeto é o de aprofundar o golpe, executar o sempre temido golpe no golpe, e a substituição de um presidente fraco por um forte é um modo de terminar as reformas propiciadas pela janela.
Indiretas num compromisso de fechar a janela poderiam ser uma boa ideia, mas há hoje essa possibilidade? O fato é que grandes acordos podem ser interessantes e às vezes até necessários para superar profundas crises institucionais, e eles podem se efetivar por diferentes caminhos, como as indiretas que a Constituição aponta hoje ou diretas que ela poderá apontar.
Mas o que não se pode imaginar hoje é que tudo possa acontecer como se vivêssemos no mais normal dos mundos, como se não houvesse uma janela que nos mostrasse a inutilidade das equações do Direito puro.
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Digo Direito puro por analogia à Matemática pura. Nada a ver com Kelsen (acho).
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