Até que ponto uma imagem consegue ilustrar uma ideia? A pergunta me acompanha desde o dia em que resolvi fazer o Bissexto. De início, pensava que textos com imagens ficariam mais chamativos, mas poderiam distrair o leitor da mensagem em si. Além disso, um blog que não fosse ilustrado já passaria de saída a impressão de que nele havia ideias.
Logo aprendi que não funciona, e isso por um motivo muito simples: como vivemos a Era do Facebook, certamente mais de 90% dos meus já poucos leitores só chegam aos textos porque ali os compartilho, e, se todos os compartilhamentos vierem invariavelmente com o logo do Bissexto, deixarão de chamar a atenção.
Ficou mais bonito o blog com imagens, e até brinquei com isso quando escrevi Colorindo, mas a mudança me trouxe um trabalho adicional, muitas vezes difícil de executar: escolher uma imagem para cada texto.
Por outro lado, desenvolveu em mim um novo hábito: quando penso um texto, já penso simultaneamente a imagem. Deve ser bom para prevenir do Alzheimer.
Há momentos em que a imagem cria uma situação de tensão com a própria mensagem. Percebi isso ao escrever sobre a esperança. Logo que pensei em Dante, Gramsci, Bobbio, Levi, e porque desde o início sabia que Caronte estaria presente no texto, planejei usar a ilustração de Gustave Doré para a Divina Comédia. Talvez menos pela Divina Comédia e mais por Doré, cujas ilustrações acompanharam tantas leituras da minha infância, sempre levando a imaginação para além do próprio texto.
Mas o Caronte de Doré não me serviu. Achei duas imagens. Numa, embora remasse energicamente e passasse a ideia de degredo, não o acompanhavam as almas que deveriam ouvir sua advertência; a outra até servia, porque nela o Aqueronte está cheio de almas desesperadas, mas faltava à imagem qualidade gráfica que permitisse sua utilização. Acabei, por isso, optando por uma pintura de Litovchenko, encontrada por acaso.
Mas ficou Caronte, e depois me pus a pensar o motivo pelo qual, num texto sobre a esperança, a ilustração escolhida simbolizava a sua negação. Por que não pensei nisso antes? Por que motivo, se estava fazendo uma profissão de fé na esperança, meu subconsciente me traía desse jeito? Será porque em mim, no fundo, o pessimismo da inteligência sufoca o otimismo da vontade? Ou então porque esperança e desesperança formam uma díade inseparável, em que só a presença de uma permite imaginar a outra?
Não tenho uma resposta para isso. Ou melhor: tenho muitas, ao menos como hipóteses. Mas o fato é que para o texto seguinte, Fé e esperança, logo pensei numa imagem que havia visto dias antes e que provocara em mim uma enorme desesperança: a foto de um urso polar esquálido, trágica caricatura da degradação do planeta. Acontecia de novo: reafirmava a esperança, tornava a ilustrar o texto com a desesperança.
Mas, na busca, aconteceu algo interessante: embora tenha logo achado o urso desejado, achei também outro, que acabei escolhendo, também magro, mas que, agarrado a um bloco de gelo, simbolizou para mim essa força vital de lutar, ainda que desesperadamente, pela sobrevivência. Aliás, embora talvez não seja mais que uma questão semântica, discordo de Bobbio nesse ponto: mesmo no desespero há esperança, e a imagem que escolhi tinha essa dupla significação.
De qualquer maneira, a relação entre imagem e texto mudou: a negação, presente na primeira publicação e quase repetida na segunda, foi substituída por uma foto em que a luta contra a adversidade traz a ideia de superação, de agarrar-se a uma chance.
Publicados os textos e pensando eu nessas questões, me procurou, pela primeira vez desde que iniciei o Bissexto, uma imagem que, sem ter texto, pediu para ser publicada: trata-se de um roteiro manuscrito, em que um sírio traça o caminho do refúgio e calcula seu preço.
A imagem, publicada no The Guardian, é tão problemática para meus propósitos como todas as anteriores, porque essa esperança desesperada, com todos os riscos que a aventura impõe, dos quais certamente o espancamento por policiais húngaros ou macedônios é dos mais desejáveis, pelo que significam de superação das barreiras anteriores, só se apresenta aos tantos que sonham com a viagem europeia porque já não há esperança no seu próprio país.
É, de novo, a esperança que nasce da desesperança. Mas, mesmo a desesperança volta a se manifestar como esperança na fala do menino sírio, que diz, de modo muito mais claro do que todas as voltas que aqui dou: “Não queremos ir para a Europa. Terminem a guerra, e ficaremos na Síria.”
De qualquer maneira, mesmo descrente da opção desejável de ficar em casa, a imagem de agora me permite uma reconciliação plena com a esperança, ao mostrar a singela figura que abana sua bandeira após vencido o longo e difícil caminho.
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