A fala é do professor Eduardo Carrion. Tenho por ele respeito pessoal e admiração intelectual, e por isso fiquei mais preocupado ao ouvi-la. Aconteceu mesmo aquela coisa comum, de não me dar conta imediatamente da inteireza do que é dito, e por isso até fiz uma coisa que não costumo fazer: fui atrás da gravação, para ouvi-la novamente.
Faço um resumo, com toda a arbitrariedade que pode estar contida nos resumos, mas penso que não serei infiel ao conteúdo. Ele disse mais ou menos isso:
A experiência democrática está se aprofundando e enraizando cada vez mais. A Constituição, que levou algum tempo para implementar-se, tem agora a defendê-la a Polícia Federal, o Ministério Público, o Judiciário. Não merecemos a classe política que temos, que não tem dimensão republicana e cuja face mais aparente é o gosto pela corrupção, mas isso está sendo desnudado, e a sociedade está se dando conta da necessidade de mudar referenciais e paradigmas. Este momento de impeachment se apresenta, então, como o momento da penitência, em que pagamos nossos pecados. O episódio do impeachment se apresenta como uma briga entre setores da elite política. Podemos raciocinar eventualmente se há relevância ou não nos motivos apresentados, e, rigidamente, se fosse aplicada a Lei 1.079/50, um grande número de governadores e prefeitos igualmente teria de responder pelos mesmos fatos. Mas, se, de uma forma ou outra, esses motivos não forem considerados suficientes, a presidente poderia ser processada por outros fatos. Os parlamentares estão levando em conta a totalidade da obra. Deve ser considerado que, como afirmam todos os doutrinadores, a natureza do processo de impeachment é híbrida, jurídico-política. Não pode haver puro arbítrio, mas é inequívoco que ao menos houve omissão da presidente com relação aos desmandos na atividade pública, entre os quais a corrupção, que não é foco desta denúncia, mas pode também levar ao julgamento por crime de responsabilidade. Por isso, não faz sentido vir agora com firulas jurídicas, o que precisamos é pensar no futuro. Na verdade, faltou para a presidente desprendimento para renunciar quando ainda era possível.
O discurso seguiu com outras considerações, mas me atenho a esta fala, que se fixa no que chamo de golpe, atribuição que, se bem entendi, o professor reduziu a uma firula jurídica.
Pelos ditos, pelos não ditos, pelos subentendidos, trata-se de uma fala riquíssima, que eu não saberia comentar em toda a sua inteireza, ao menos não num texto de manhã de sábado. Mas há coisas essenciais a serem destacadas, que revelam uma leitura muito diferente da que faço, e é sobre isso que quero falar.
Começo pelo que considero ser um reduzido teor crítico em relação ao que para mim fere de morte a nossa democracia: a ilegalidade estampada no processo. O professor menciona a natureza jurídico-política do impeachment, alega que nele não pode haver puro arbítrio, mas negligencia a falta de justa causa com argumentos como o de que está sendo considerada a totalidade da obra; de que, se não fosse processada por isso, a presidente poderia sê-lo por outras coisas; de que foi omissa em relação a desmandos praticados por seus subordinados.
Quando ouço isso, penso como pode ser possível que duas pessoas inteligentes e que prezam a democracia – com certeza, o professor tem essas duas qualidades e eu pretensiosamente as invoco também para mim – possam ter leituras tão diferentes acerca de um processo.
Há um ano, provavelmente na mesma época em que o professor pedia à presidente a grandeza de renunciar, escrevi assim, num dos meus primeiros textos sobre o assunto: “A questão é que, posta essa natureza do processo, e construído um clima de polarização e revanche, não é de se descartar que as manifestações passem de um primeiro momento de simples protestos para um segundo momento de tentativa de inviabilização política, seguido da tentativa de impedimento. Assim, mesmo sem qualquer fundamento que possa justificar a ação, o fato político criado seria a porta de entrada para uma pantomima revestida de devido processo legal.”
Quando disse pantomima revestida de devido processo legal, não o fiz por uma especial capacidade de premonição, mas porque, já tendo clara a pobreza dos argumentos jurídicos, percebia que era isso que podia acontecer: um processo em que formalmente fosse concedido o direito de defesa e em que ao final seria emitido juízo de condenação sem crime e com base no critério único da rejeição política. O professor não dá atenção a isso, que considera de menor relevância, e usa argumentos como o do conjunto da obra e o dos outros fundamentos que poderiam ser trazidos. O impeachment com base nas pedaladas não cabia? Não tem problema, por algum motivo ela acabaria saindo, e motivos havia. Simples assim, e mesmo o pedido da OAB, que de novo tinha a delação de Delcídio Amaral, serviria para esse propósito.
Pequena pausa: quando ouço o argumento do conjunto da obra, que outros também utilizaram, sempre penso naquela não improvável cena, de quando castigos físicos eram elemento importante na educação das crianças, em que, na iminência da surra, e diante da objeção da inocência, a resposta era de que com certeza alguma coisa errada havia sido feita.
Há, é certo, um momento em que o professor dá a entender que, aplicada, a Lei 1.079/50 levaria ao impeachment grande número de governadores e prefeitos. Por esse caminho, haveria a justa causa. Admito, então, o raciocínio e pergunto: nesse caso, por que motivo é só a presidente que cai? Por que não caem os governadores e prefeitos? Por que, ao invés de cair com ela, o vice recebe a presidência de prêmio em seu lugar?
O próprio professor dá uma pista, ao dizer que se trata de uma briga entre setores da elite política, mas trata disso com uma naturalidade desconcertante: então, setores da elite política brigam, um grupo inventa um impeachment ad hoc – já que invadi o latim, diria que com uma falácia ad hominem –, e qualquer queixa que daí possa advir não passa de firula?
O professor Carrion é otimista. Infelizmente, não consigo compartilhar com ele a convicção de que a sociedade está se dando conta da necessidade de mudar referenciais e paradigmas, de que a experiência democrática se aprofunda e enraíza cada vez mais e de que o momento do impeachment é um momento de penitência de todos nós, que nele pagamos nossos pecados.
Pena que não penso assim. Eu seria mais feliz.
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