A dúvida na gaveta

O insondável tempo do Supremo, de uma lentidão indescritível para tantas coisas, chegou cedo demais para esta minha dúvida, que nunca será respondida: o que seria feito de Cunha depois que ele tivesse prestado o serviço?

A dúvida não dizia respeito à decisão suprema, que não fora tomada em dezembro, mas era de como a questão seria resolvida no âmbito da política. Entenda-se: independentemente das destoantes leituras acerca do papel político que hoje desempenha o STF, imaginava o tipo de acordo existente entre Cunha e os demais atores dessa burlesca tragédia e, mais, se esse acerto seria cumprido.

Desde sempre, estava claro que Cunha não era um figurante qualquer, e por isso não poderia ser retirado de cena sem comprometer o roteiro: era um jogador de respeito, que sabia manobrar como ninguém e tinha na mão, ou no bolso, um exército de parlamentares disposto a seguir seu comando.

Mas, jogado o seu papel de comandar o tão desejado impeachment, o que aconteceria? Havia um caminho lógico a ser seguido na vertente da política feita por raposas, para cuja sobrevivência alguns sacrifícios precisam ser feitos. Cunha era um peso excessivo a ser suportado, porque se tornou a personificação da corrupção.

De que maneira seria possível impingir à Nação o discurso cada vez mais frágil de que o impeachment se fazia para acabar com a corrupção, se ele permanecesse intocado? Já não era demais que ele tivesse sido o condutor e símbolo do processo?

Não que se esperasse coerência dos condutores da farsa, porque o cinismo sempre se fez presente na política, mas a regra de ouro do cinismo é que ele não pareça cínico, e estava tudo escancarado demais. Nesse caso, há outra regra: a de que os anéis devem ser entregues, para que o resto permaneça.

Logo, a lógica realista recomendava descartar esse Midas, cujo toque produzia um ouro muito suspeito. Afinal, se o que mais importa é a aparência, e mesmo quem vestiu feliz a camiseta da seleção já pensa que Cunha é chefe de quadrilha, era fundamental, para que acreditassem na sinceridade da cruzada, que ele fosse defenestrado.

Seria uma ação exemplar, que daria ao movimento golpista um símbolo: somos, sim, contra a corrupção, e cortamos fundo nessa carne, nem ao menos poupando nosso aliado. Descartado este, exercida a ação purificadora e vivida a catarse, o mundo seguiria em frente sem novos questionamentos.

O problema é que Cunha era justamente carne; não era um anel que se entregasse sem sentir as dores do corpo. Ele nunca se limitou a ser mero instrumento, mas foi dos mais importantes articuladores. É esse papel que explica os discursos laudatórios que se seguiram ao 16 de abril, muitos dos quais propuseram fosse anistiado em reconhecimento aos inestimáveis serviços prestados.

Cunha parecia importante demais para ser descartado. Era um operador qualificado, que punha o regimento da casa a serviço de seus planos sinistros, sempre amparado por uma intocada liderança, que parecia torná-lo imune a qualquer oposição.

Era caro o preço de mantê-lo, porque revelava como nada a falsidade do discurso moralista, mas era ainda mais caro o preço de removê-lo, porque trincaria a sagrada aliança do impeachment. Ademais, estava evidente que, assim como aceitou e conduziu com sucesso o pedido de impeachment como represália por ter o PT apoiado a instauração de processo contra ele, dirigiria sua poderosa munição contra quem mais desejasse afastá-lo.

Se era fundamental manter as aparências, mais fundamental ainda era se preservar, e preservar-se perto de Cunha era não cutucá-lo. Era desse modo que, tudo indicava, se implantaria a estranha república anticorrupção de Temer e amigos: se danassem as aparências, havia coisas mais importantes a serem preservadas.

Mesmo assim, minha dúvida persistia, porque o que está sendo construído é tão caricatural, que não se sustenta só com o velho cinismo da política; exigia, bem mais, o cinismo de quem foi às ruas para apoiar o impeachment. Essa lógica, se aplicada, conteria algo de suicida, porque revelaria aos indignados que as coisas não haviam sido tão sinceras.

Agora, a dúvida vai para aquela gaveta das coisas que não aconteceram. A seu modo e no seu tempo, o Supremo afastou Cunha. Imagino que para alívio de quem foi poupado de enfrentar o problema.

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