Escrevo no momento em que meus vizinhos batem panela e sopram vuvuzela. Me sinto só, como me sinto só entre meus colegas de profissão, na academia e em tantos lugares.
Devo estar muito errado, porque a corrente toda vai para um lado, e me vejo remar contra ela. Me sinto, eu próprio, um malfeitor, porque está todo mundo tão certo sobre os crimes de um único lado, que o simples fato de questionar as verdades hoje inquestionáveis me colocam como aliado do mal.
Mas, como acima de tudo estão minhas convicções democráticas e o meu propósito de ser crítico, o que significa ao menos tentar ver o outro lado, vou marcar minha posição.
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Nunca escondi que sou de esquerda. E quando me digo de esquerda, o faço pragmaticamente. Não defendo coisas que no meu tempo histórico me parecem irrealizáveis. Para mim, hoje, no Brasil e no mundo, ser de esquerda é lutar pela redução das desigualdades sociais, por saúde e educação para todos, pela defesa do meio ambiente, pela igualdade de gêneros, por políticas de inclusão, contra a brutal concentração de renda.
Isso me leva a uma série de convicções, como, por exemplo, sobre a importância do papel fomentador do Estado, porque sei muito bem que o mercado pode servir para muitas coisas, mas nunca para assegurar uma maior igualdade entre as pessoas. O mercado deixado solto gera desigualdades sociais crescentes, e só o Estado pode, por meio do direcionamento dos tributos e dos investimentos, contrabalançar essa tendência.
Quando vejo um governo cumprir esse papel, fico satisfeito. Quando vejo que um governo deixou de cumprir esse papel, mas as alternativas que se põem são de retrocesso, não quero que ele saia.
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Mas – me perguntarão –, isso pode me levar a ser complacente com a corrupção? Não, de jeito nenhum. Mas – e aí peço alguma serenidade no pensar –, qual corrupção queremos extirpar? Só a do atual governo? Não dos demais? Podem explicar, meus amigos de classe média, o motivo de baterem panelas só para um? Ainda aguardo uma resposta convincente sobre a indignação seletiva, mas não a ouço.
Tento adivinhar uma explicação ao menos convincente, e me ocorre uma: é que esses estão no governo, e por isso são o alvo; fosse Aécio o presidente, as panelas seria batidas contra ele. Mas acho difícil de acreditar que meus vizinhos moralistas agiriam assim.
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Tenho uma outra convicção, tão forte quanto a da inclusão social: a da necessidade de defender a democracia. Em outras palavras: as regras do jogo. E não falo só de o mais votado tomar posse e exercer o governo, mas de preservar o Estado Democrático de Direito, que a Constituição escreve assim, com maiúsculas.
Falo, por exemplo, da presunção de inocência, do devido processo legal, do princípio do juiz natural. Vejo com tristeza a caça às bruxas. E a caça às bruxas é assim: primeiro as escolhemos e depois vamos procurar as bruxarias que possam ter cometido.
Mas, para muitos, a democracia é meramente instrumental. Interessa só quando nos é útil, e as regras do jogo são dilatadas e retorcidas ao sabor dos interesses.
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Esses dias, mencionei artigo de Sérgio Moro de 2004 em que enaltecia os vazamentos de delações à imprensa, e apontei a coincidência com os vazamentos seletivos da Lava Jato. Fui acusado de atentar contra a Lei Orgânica da Magistratura, por criticar a jurisdição de outro magistrado.
Pois quero dizer que me assusto com tantos juízes se fotografando de toga em defesa de Moro e com tão poucos juízes se questionando, ao longo dos meses, com o fato de que delações obtidas em segredo de justiça tenham sido seletivamente vazadas. Me assusto enquanto hoje vejo tantos juízes estarrecidos com o telefonema de Dilma a Lula e quase não vejo juízes preocupados com o ilegal vazamento da conversa.
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Sinto, nas ruas e nas redes sociais, uma ideia de justiçamento, uma adesão incondicional a práticas que cada vez mais se revelam ilegais, uma histeria acrítica. Vejo serem eleitos heróis que querem botar fogo no circo e não vejo vozes de moderação.
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A Lava Jato teve o grande mérito de escancarar algo de que há tempo se tinha conhecimento: a corrupção que age nas entranhas do Estado brasileiro. Isso é positivo: é necessário que tenhamos investigações sérias e os culpados sejam condenados.
Mas, devemos ter clara uma coisa: a Lava Jato passará e não será ela que mudará as condições que permitem a ocorrência da corrupção. A tão festejada Mani pulite criou um vazio político que permitiu a ascensão de Berlusconi, político tão ou mais corrupto quanto os que foram forçados a sair de cena.
Na verdade, a corrupção é endêmica e não é um fenômeno nacional. Há países em que ela é maior, há países em que é menor. E há países em que espasmos moralistas dão uma varrida, sem que a prática seja diminuída – nem digo erradicada, porque isso é impossível.
Mas, nesse clima de cruzada cívica, quem quer saber de discutir as causas da corrupção e a criação de mecanismos para combatê-la? Queremos apenas lavar a alma e sentirmos a espada da justiça se abater sobre os corruptos de hoje.
Alguém se interessa, por exemplo, com ter uma lei anticorrupção? Alguém discute o aperfeiçoamento de organismos de controle, seja no âmbito do Executivo, seja dos demais poderes? Alguém acredita no Tribunal de Contas da União? Alguém acredita ainda no presidencialismo de coalizão? Alguém pensa em reforma política? No modo de financiamento de campanha? Mas isso não são temas com os quais nos preocupamos, embora daí nasça a corrupção.
Parece que nos contentamos em reduzir tudo a refrões, como o das ovelhas da Revolução do Bichos.
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Se sou democrata, devo pensar: o que virá depois disso? Para onde nos levará a radicalização? Quem virá depois, se o governo cair? Não falo nem da ordem de sucessão, Temer, Cunha, etc., falo do cenário político nacional.
Isso não é um problema menor. Hoje a cena política nacional está dividida entre PT e PSDB. Se cair o PT, virá o PSDB? Diminuirá a corrupção?
Pior que isso, vejo se criar um preocupante quadro de vazio político. Se Aécio e Alckmin foram corridos da Avenida Paulista, o que sobra? Dizem que os novos heróis nacionais são Moro e Bolsonaro, não sei em que ordem. Moro é juiz, e não pode ocupar esse lugar. Aliás, desconfio muito de juízes nesse papel. E Bolsonaro, bem, desse nem preciso falar.
Será que os radicalizados de hoje pensam nisso?
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Outro dia ouvi alguém comentar que, neste momento em que começam a se tornar públicos os podres dos caciques do PSDB, logo dariam um jeito de se acertar com o PT, para se protegerem mutuamente.
Acredito que esta foi uma avaliação equivocada, mas, num outro sentido, há muito tempo penso na necessidade de criar um diálogo entre os representantes das maiores forças políticas, em busca de um pacto que envolva a governabilidade e o compromisso de construção de uma nova institucionalidade. E não vejo ninguém com a mesma representatividade de Lula e FHC para iniciar qualquer diálogo. O Brasil não tem outras lideranças democráticas, e o debate que parta desses dois pode indicar o caminho para reafirmar a democracia, com outras bases, e livre dos messianismos autoritários.
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As panelas silenciaram, buzinas continuam na rua. Sigo me sentindo só. Lembro de Descartes. Penso, logo existo. Acredito que ele me desculparia por me apropriar assim arbitrariamente dessa frase, e acho que faria bem para nossa existência que cada um de nós tentasse pensar um pouco.
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Escrevi O espelho, sobre as estranhas rugas que surgiram no rosto de muitos de democratas.
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