Os conceitos antagônicos civilização-barbárie são úteis para a análise de muitas coisas da vida. A oposição pode até ser questionada, porque a barbárie não deixa de se manifestar como elemento da própria civilização, mas, se tomarmos os conceitos puros, certamente jogarão luz sobre tantas coisas que acontecem ao nosso redor.
Também não é muito certo que o Estado represente a civilização, e há mesmo quem sustente que ele tem uma função fundamentalmente de domínio dos poderosos contra os mais fracos, mas tomemos a ideia mais corrente e que está na própria justificativa para a sua existência: o Estado não só representa a civilização, mas age para que ela seja preservada contra quem a ataca.
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Para que haja civilização, é necessária a existência de regras civilizadoras. Tomo um exemplo bem prosaico: não matar. A proibição de matar é uma regra civilizadora, e o Estado deve zelar por ela.
No confronto entre polícia e bandido, a polícia representa a civilização e o bandido a barbárie. Essa é a razão pela qual é lícito presumir que, se eventualmente encontrasse o policial desarmado, pedindo clemência, ainda assim o bandido atiraria. Já o policial, representante da civilização, em igual circunstância algemaria o bandido e o levaria preso a alguma delegacia.
Isso não são devaneios de gabinete, é o resultado de milhares de anos investidos na construção da sociedade em que vivemos, é o que está na Constituição brasileira, é o que está nas leis penais de todos os países democráticos, é o que está nos manuais de procedimento de qualquer polícia militar desses países.
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Quem deseja outra coisa da polícia já não a quer representante da civilização, a quer bárbara, assassina. O desejo de vingança, a ideia de que bandido bom é bandido morto, são as manifestações da barbárie na consciência de cidadãos, talvez até porque tenham sofrido os efeitos da violência ou ao menos o temor de que possam ser vítimas dela.
Evidentemente, a existência de um número tão elevado de defensores do justiçamento assusta, e ouvir “tomara que aconteça contigo” quando se questiona essa prática é chocante pelo que carregam de barbárie os cidadãos de bem, mas é compreensível que pessoas que nunca aprenderam a cultura democrática e sem a menor ideia sobre as causas da criminalidade acreditem que ela pode ser debelada por uma polícia que mata.
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Diferente é o que acontece com duas classes de profissões, que não poderiam agir desse modo. A primeira é a dos jornalistas. Jornalistas têm por ofício a tarefa de bem informar e são, além disso, formadores de opinião.
É certo que o jornalismo obedece às leis de mercado e é certo que os Datena atendem bem a um público sedento de sangue e vingança. O jornalista-comentador que homenageia policiais por terem matado bandidos tem mais chance de ser lido e apreciado do que aquele que vê a execução. Ser Datena é uma tentação: trata-se de comunicação fácil, com falas primárias, e é a quase garantia de audiência e apoio.
Mas, quando se multiplicam jornalistas seguindo a mesma trilha, o que ocorre é a falência do jornalismo crítico, a falência da vocação primordial de mostrar o que aconteceu e, pior de tudo, o uso de canais de comunicação para a propagação da barbárie.
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A outra classe a que me refiro é dos juízes e dos promotores. Até não estranho que alguns promotores, habituados à função acusatória, incorporem em seu léxico a palavra “vagabundos”, mas quando ela se torna corrente entre esses profissionais do Direito, quando um juiz ou um promotor passam a defender uma execução, já não estão do lado da civilização, esqueceram que um dia juraram defender a Constituição e que a sua profissão lhes impõe um outro agir e um outro pensar.
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Sempre tive uma impressão sobre a Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Por ofício, soube de espancamentos praticados por brigadianos, mas mantive a impressão: de que é uma polícia militar que mata menos que a de outros estados. Digo isso sem ao menos me amparar em estatísticas, apenas pela percepção dos noticiários, em que são raros os casos de chacinas praticadas neste Estado por policiais militares.
No caso do Hospital Cristo Redentor, há a informação de um tiroteio prévio em outro local, com dois policiais feridos. Depois, novo encontro em frente ao Hospital. Tenho palpites sobre o motivo pelo qual os criminosos também foram ao Hospital logo após o tiroteio e tenho algumas convicções sobre o modo como morreram os três que permaneceram dentro do veículo. Por serem apenas palpites, não falarei sobre isso.
Mas a imagem da morte do quarto criminoso não deixa nenhuma dúvida sobre execução. Posso imaginar mil explicações sobre o motivo pelo qual os policiais assim agiram, mas nenhuma é escusadora da ação.
Admito, para argumentação, que no restante do confronto a Brigada Militar agiu corretamente. Naquele momento não agiu, e foi agente da barbárie.
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Quando a imprensa informa que os policiais que participaram daquela ação serão condecorados, ela transmite uma mensagem do comando da Brigada Militar: eles agiram bem, é assim que devem atuar.
É compreensível que o comando queira preservar seus subordinados, e poderia tê-lo feito de outro modo. Poderia, por exemplo, ter elogiado a bravura dos policiais militares e dito que eventual excesso seria investigado. Poderia mesmo ter afirmado o estado de extremo estresse em que atuam, com salários atrasados, efetivo reduzido e armamento inferior.
Mas optou por justificar o injustificável. Optou por dizer: é assim que se deve fazer. É sabido como essas coisas começam, não se sabe como terminam. Talvez estejamos a caminho de termos também no Rio Grande do Sul uma Brigada Militar que mata.
Mais uma vez, fica difícil saber onde está a civilização.
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Na imagem, Caim e Abel, de Tintoretto.
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