A avó da Silvana Moura

Minha vó mandou desamigar do todos que defendem Israel.

Achei de rara felicidade essa publicação, que diz de modo jocoso algo que já pensei tantas vezes em dizer. Se não o fiz, foi porque me faltou o tom, esse que a vó da Silvana – ou ela própria – soube dar.

Desamigar é sempre um ato de rejeição, que pode parecer fruto de intransigência ou intolerância. Lembro da discussão com um sionista, em que fui enfático nos argumentos, e ele encerrou a discussão dando shalon dizendo “fique com sua ira, que fico com minha paz”.

Era educado esse sionista (a maioria é), e começava com o famigerado “tu sabe que eu defendo os dois estados”, chave de acesso para legitimar tudo o que diria depois.

E seguia repetindo uma surrada história, em que tudo começa no 7 de outubro: criticava Netanyahu pelos excessos (os excessos!), mas afirmava que tudo isso era necessário para acabar com o Hamas.

Para os sionistas cheirosos, Netanyahu é o Hamas de Israel, com a diferença de que, quando atribuem a culpa a Netanyahu, absolvem Israel, o que não fazem com a Palestina diante dos atos do Hamas.

Acontece que Netanyahu é o cara que faz agora o serviço sujo para obter o resultado desde sempre almejado pelo movimento sionista. A depender das circunstâncias, será descartado em seguida, mas o resultado ficará.

Esse sionista educado com que discuti disse, em certo momento, que ainda não se tratava de genocídio, e o chamei de cínico (vejam como fui grosseiro!).

Depois me pus a refletir sobre o que significa um argumento desses. Não vou reproduzir tudo o que pensei sobre o papel do “ainda” no enunciado “ainda não é genocídio”, mas ficou evidente que ele vinha acompanhado de outro “ainda” subentendido: “ainda posso culpar o Hamas”, ou então “ainda precisa morrer mais gente antes de eu esboçar alguma crítica”. E havia outro subentendido: o de que somente genocídios consumados merecem nossa censura.

Isso tem algo de uma taxonomia perversa, do tipo “deixa terminar para depois dizermos exatamente o que foi” (e aí penso em Habermas, Scholz, Tribunal Penal Internacional, etc.). E vêm os caras dizendo que no Holocausto foram seis milhões, e em Gaza mal chegou a 30 mil.

Mas a evocação do Holocausto costuma justamente ser associada à ideia de preservação da memória para evitar a repetição. Aquele conhecido ditado, segundo o qual, ao sentar um nazista a uma mesa onde antes havia dez alemães, passará a haver onze nazistas se ninguém levantar, também serve para isso: lembrar o passado e evitar que se repita.

Por isso, não devo me constranger por parecer grosseiro: a avó da Silvana Moura mandou eu levantar da mesa.

Duas observações:

1) A foto não é da avó da Silvana Moura. Ela prefere manter o anonimato, e apenas sei que é natural de Santiago do Boqueirão e mora no Pulador. Para não ficar sem foto, retirei do saite da ONU a de Um Qasem, uma refugiada palestina de 84 anos (em 2019), residente num acampamento de refugiados em Damasco.

2) Não tenho paciência para discutir se a avó da Silvana deveria trocar Israel por sionismo, para não parecer antissemita ou inimiga do Estado de Israel. Este texto é sobre genocídio, e espero que os judeus dignos – e há muitos – se posicionem sem rodeios.

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3 respostas

  1. Avatar de Luís Christiano
    Luís Christiano

    Obrigado Pio! Sempre uma luz a apontar a direção certa nesses tempos em que a escuridão desce sobre nós.
    Fraterno abraço.

  2. Avatar de ADRIANA JAEGER SANTOS
    ADRIANA JAEGER SANTOS

    Gostei de tudo, mas essencialmente dessa parte: “a evocação do Holocausto costuma justamente ser associada à ideia de preservação da memória para evitar a repetição”… muito bem, estar do lado certo da história não tem preço…

  3. […] de um texto, mas a extração de fragmentos, que, isolados, possam ser usados de modo distorcido. O texto é de fácil acesso, e recomendo a leitura na íntegra, mas acrescento dois comentários: primeiro, […]

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